segunda-feira, 9 de junho de 2008

sete anos, quarenta e oito horas e setenta e seis segundos

(Uma história para ninguém ler)


Essa história dura 76 segundos e tem três personagens, eu, entre elas. É verdade que não posso começar a contá-la a partir do primeiro segundo, já que não faria nenhum sentido para você, que não me conhece ainda. Ela tem um prólogo de sete anos, os sete mais importantes anos da minha vida, mas vou resistir à tentação de descrevê-lo. O prólogo inicia quando encontrei Augusto pela primeira vez, numa conferência sobre modernismo brasileiro no MARGS. E ele termina no primeiro segundo da nossa história, quando Antônio saca sua pistola e aponta-a para o centro das sobrancelhas de Augusto.

Meu amor por Augusto foi daqueles que arrancam a razão de uma mulher, fazem-na burra, ingênua e feliz. Vivi sete anos entre o céu e a terra, pra depois desabar pro inferno em setenta e seis segundos.

Eu e o Augusto ouvíamos música até tarde, bebíamos com poesias e trepávamos chapados.

Durante sete anos, era como se existissem dois protagonistas no meu mundo, e uma multidão de figurantes.

Prometi não descrever o prólogo e não vou sucumbir à pieguice. No entanto, preciso me ater aos dois últimos dias, que foram cruciais. Cruciais porque Antônio, um colega de faculdade, resolveu conquistar um terceiro protagonismo nessa história e na minha vida. Quando eu estudava no IA, Antônio era daqueles caras fenomenais, com charme e com a preciosa habilidade, rara no gênero masculino, de saber dizer coisas boas de ouvir do mesmo modo que de saber ouvir coisas nem tão boas de escutar. Tinha uma cultura impressionante e, o que me fascinava ainda mais, um talento para a arte, um dom. Tive um caso de dois anos com ele. Moramos um tempo juntos na Riachuelo, perto do Instituto de Artes.

Já faz dezoito anos que acabei meu namoro com o Antônio. No começo foi difícil, mas me acostumei. Ele ficou arrasado, pobrezinho. Ficou umas boas semanas sem dar as caras na aula. Nós acabamos nosso namoro, isso é fato, e eu me mudei da Riachuelo, mas a brecha pela qual Antônio entra na história fui eu quem deixou aberta. Eu não conseguia cruzar indiferente por ele nos corredores do IA. Uma coisa me inflamava o peito, um nervosismo, uma atração. Não queria mais um namorado, nem um apê na Riachuelo, nem um companheiro fiel. Só queria o Antônio, de vez em quando. Nesses dezoito anos, a gente saiu junto umas vezes, só pra curtir. Tomávamos uma cerveja despretensiosa, ele me convidava pra um cinema, eu ia às exposições dele e dormíamos juntos, como antes. A verdade é que o Antônio nunca lidou bem com a separação e não entendia esses encontros avulsos como eu. Para ele, era como se eu estivesse abrindo uma porta de reconciliação do nosso namoro – dando uma chance, sabe? –, e ele, várias vezes, teimava em colocar o pé no vão pra não deixar a porta fechar. Daí eu não atendia o telefone, disfarçava outros compromissos, respondia monossílabos desinteressados, aquela coisa. E uma hora ele desistia. Só quando ele namorou uma tal de Maria Clara é que ele compreendia o teor das nossas noitadas ocasionais. Sem ligações, sem recados, sem apego.

Não nego que, lá no fundo, alguma falta eu sentia dele me procurar, me telefonar, me assediar. Toda mulher gosta disso, eu acho. Mas uma hora passava. Tocávamos vidas independentes, sem se desligar um do outro. As exposições dele foram ficando, nesses anos, mais concorridas e famosas. Eu ia raramente.

Quando eu comecei a sair com o Augusto, sete anos atrás, esqueci completamente do Antônio. Como disse, havia só dois protagonistas no meu mundo. Meu namoro com o Augusto me absorveu inteiramente, era dedicação exclusiva, amor obcecado. Antônio me ligou duas vezes, nessa época. Na primeira, para ver as instalações que ele estava expondo na Bienal e, na segunda, para tomar um café. Na primeira, eu agradeci, disse que não podia. Na segunda, disse para ele nunca mais me procurar, que nosso romance tinha acabado.

Eu vivia em êxtase com Augusto, compartilhando todas as pequenas felicidades da vida a dois. Eu fui morar com ele, num apartamento na Eça de Queirós, logo apelidado de “apê-rtado” você pode imaginar por quê. Ao mesmo tempo, eu comecei a trabalhar num novo ateliê que dividia com duas amigas no Bom Fim, bem mais espaçoso e iluminado. Nem a distância nem a falta de espaço me tiravam o humor. Eu ia, no ônibus, acalentando a idéia de encontrá-lo quando chegasse em casa. Todos os dias. Ele me esperava com uma música. Sempre aquela que eu queria ouvir.

Como disse, foram os anos mais importantes da minha vida.

Não lhe disse ainda porque decidi relatar essa história, mas o motivo é claro. É claro porque é óbvio. Culpa. Culpa por ter sido meu o deslize. O deslize que iniciou a avalanche. Não é que eu ache que alguma coisa vai mudar, que toda a neve voltará para o cume da montanha, mas o arrependimento é tão atroz, tão brutal, tão agonizante. Daí acabo vomitando essas palavras meio desordenadas. Ainda não consegui encontrar a tranqüilidade necessária para ordenar minhas lembranças, contá-las com aquela frieza de um narrador em terceira pessoa.

Ainda não cheguei sequer aos últimos dois dias do prólogo.

Meu deslize foi ter me iludido com o momento mal que passava com Augusto. Foi há umas semanas. Liguei para o Antônio. Ele ficou meio surpreso, mas soube disfarçar. O Augusto estava atolado de trabalho, chegava tarde e cansado em casa. Ele me disse que já ia passar, pra eu não me preocupar.

Contei pro Antônio do ateliê do Bom Fim, como se fosse uma novidade, e o convidei para conhecer. Marcamos para uma segunda-feira, quando eu sei que só eu trabalho lá. Ele estava bem. Garboso e elegante, como sempre fora. Não omitiu uma ironia sobre minha resposta ao convite último dele, mas sorri, como se fosse natural.

Quebramos trepando a tela em que eu vinha trabalhando. Um movimento brusco e desastrado. Mas prazeroso.

No ônibus de volta para casa, eu estava satisfeita. Pronta para conviver novamente em harmonia com Augusto, amando-o mais que nunca. Aquela tarde com Antônio fora necessária, no entanto, para isso. Pensando assim, não era uma traição. Mas foi, verdade seja dita, o início do meu deslize fatal. Abri, naquela tarde, a porta pela qual Antônio conquistaria o terceiro protagonismo da história.

Ele passou a me procurar obstinadamente nas semanas seguintes. Aparecia diversas vezes no ateliê, perguntando por mim. Obriguei minhas colegas a uma mentira cúmplice em cada uma das vezes. Ligava certas vezes lá pra casa, obrigando-me àquela atitude suspeita de trocar de recinto para sussurrar ao telefone. Me afligia a idéia de que Augusto pudesse descobrir, porque ele nunca me compreenderia. Ele só veria uma traição vulgar de uma mulher desapaixonada.

O cerco de Antônio, no entanto, tornava as coisas bem mais complicadas.

- Alô.

- Oi, Cacá, é Antônio. Tô precisando muito falar contigo.

- Eu já te falei pra não ligar aqui pra casa.

- Eu sei, eu sei. Mas Cacá, me escuta, por favor, não desliga. Me escuta só um pouquinho.

- Fala logo, enquanto tô sozinha.

- Tu tá sozinha? Posso ir aí?

- Tu tá louco, Antônio? O Augusto chega daqui a pouco. Não confunde as coisas.

- Tá bom, tá bom. Mas não desliga. Escuta, Cacá, tu não sabe como eu tenho sofrido nesses último tempos. Minha vida tá uma barra desde que tomei aquele pé-na-bunda da Lúcia. Lembra dela?

- Nem conheci.

- Pois é, pois é. Ela era uma guria demais. Morei quatro anos com ela. Mas ela foi embora uns meses atrás. Tu não faz idéia de como ela me fez falta. Senti um vazio no apê e no coração, sabe?

- Ah, Antônio, não começa. Eu não quero ouvir isso. Não quero mesmo. Isso não tem a ver comigo, entende?

- Claro que tem, claro que tem. Deixa eu falar, não desliga. Quando eu tava me exasperando, quando eu tava mal mesmo, tu me ligou. Foi uma luz, Cacá. Tu me encheu o dia de alegria. Foi uma benção.

- Antônio. Não pensa bobagem. Eu tô com o Augusto agora. Não dá. Coloca isso na cabeça.

- Uma vez só, eu tô te pedindo. Será que eu não posso te ver mais uma vez só? É um pedido de ajuda, é só isso que eu preciso. Pó, Cacá, pelo que a gente já viveu junto...

- O Augusto tá chegando. Tenho que desligar, tchau.

Não era verdade, lógico. Mas agüentar aquilo era um suplício pra mim. Tinha vezes que o Augusto até achava estranho minhas atitudes, e eu tinha certeza que ele suspeitava de algo. Isso me deixava ainda mais nervosa. Recebi dois e-mails do Antônio, nessas semanas, me pedindo ajuda, explicando tudo aquilo, falando como tinha sido bom me encontrar e querendo me ver só mais uma vez. Deletei. Não nego que eu me sensibilizava com aquilo, mas tinha para mim como certo que minha volta com o Antônio não poderia ir além daquela tarde no ateliê. Era minha vida toda com o Augusto em jogo. O segundo email foi mais dramático. Dizia que eu era o último sentido que ele podia ver na vida, e que ele precisava de mim mais que tudo. Deletei.

Na cama, no escuro e no silêncio, todo tipo de hipótese me assolava. Até fugir com o Antônio pensei. Mas o que eu pensava mesmo era o que fazer ou dizer para convencê-lo de que não era eu a solução para a depressão dele. A rispidez, a indiferença e os monossílabos não estavam funcionando.

Aquela situação estava me consumindo.

Até que, numa noite qualquer, eu, literalmente, inventei uma solução. Certamente a mais impulsiva e estúpida que podia inventar. Com isso, já demonstrei até aqui boa parte da culpa que assumo pelo que aconteceu.

Estava no telefone com Antônio, ele beirando as lágrimas. Eu estava sozinha em casa. Ele me perguntava incisivamente o que me impedia de encontrá-la na manhã seguinte, para um café no Bom Fim. Eu tinha dado algumas respostas que, confesso, não foram nada convincentes. Ele estava obstinado e mal me deixava responder direito, com a voz um pouco abalada. Então, inventei subitamente uma mentira, uma mentira descabida, uma mentira absurda. Foi o que me ocorreu na mente na hora.

- Antônio, não tem como eu te encontrar mais. Tô te falando. Se o Augusto descobrir, ele vai me espancar. Não tem jeito, não tem jeito. Ele é assim.

- Ele bate em ti?!

- Só quando eu dou motivo, ora. Por isso que estou te dizen...

Ele desligou.

Um frio me subiu pela espinha. Fiquei uma infinidade com o telefone na mão, ouvindo o barulho automático e periódico do outro lado da linha. Um medo inimaginável tomou conta de mim, estava em pânico. Comecei a chorar e andar desvairada pelo apartamento, pensando no quê passava pela cabeça transtornada do Antônio àquela hora. Quando consegui retomar algum controle sobre mim, liguei para Antônio, ainda chorando. Ninguém atendeu.

Quando o Augusto chegou, ele obviamente perguntou o que tinha acontecido. Não conseguira me recompor e estava visivelmente abalada. Mas não consegui contar nada. Menti de novo. Como iria explicar àquela flor-de-pessoa que havia transado com outro cara? Que aquela transa não era nada e que eu ainda o amava mais que tudo? Que eu precisava me livrar há semanas desse cara e não sabia se havia inventado uma mentira inteligente ou completamente idiota? Que eu havia dito pra um cara já meio instável que ele, Augusto, me batia de vez em quando? Ora, ora.

- Nada, Guto, nada. Tô de TPM, meu dia foi difícil. Amanhã passa.

Ele não tocou mais no assunto. Fez uma janta pra nós. Eu tentei fingir naturalidade. Mas com meus botões ficara conjeturando as reações do Antônio no outro lado da linha, logo que desligou o telefone. Agora era aquilo que me massacrava mentalmente. Um pensamento obsessivo. Cheguei, naquela noite, a formular pela primeira vez uma hipótese que hoje me parece o mais plausível possível: a de que Antônio, durante todos esses anos, me oferecera muito mais amor e devoção do que recebera em troca, que ele me amava de verdade e sofria constantemente com minhas idas e vindas. Isso me deixava ainda mais confusa.

Esqueci de dizer: esses eram os dois últimos dias do prólogo, os cruciais. Porque, como disse, se Antônio forçou sua entrada na história a partir daí, foi só por que lhe ofereci essa possibilidade.

Desnecessário dizer que não dormi nessa noite. Estava inquieta na cama, com os olhos alerta e a imaginação ribombando. Augusto percebeu meu desconforto e minha ansiedade. De madrugada, disse, com aquela voz doce pela qual me apaixonei: “Tenta te acalmar. Amanhã vamos ver um ginecologista. Isso não é normal.” E beijou minha testa. Tentei desesperadamente escolher as palavras para explicar para ele o que tanto me atormentava, compartilhar com ele minhas dúvidas. Quando achei que tinha juntado a coragem com as frases necessárias para contar tudo, chamei-lhe:

- Guto...

Ele se virou e me olhou, calmo, perguntando o que era. Então minha decisão corajosa correu para um lado enquanto as palavras escolhidas corriam para outro. Minha força de vontade sucumbiu à insegurança e respondi um covarde:

- Te amo.

Ele só sorriu e me beijou.

No outro dia, fui para o ateliê, mas não consegui fazer nada além de pensar no Antônio. Tentei ligar pra ele, mas ninguém atendeu. Alguns instantes depois, tocou o telefone: era o Augusto. Perguntou como eu estava e eu menti que estava melhor. Ele disse que ia preparar uma janta especial pra quando eu chegasse. Aquilo me deu um certo conforto. Peixe com alcaparras, que eu adoro.

Voltei pra casa angustiada, dividida entre a figura transtornada e instável de Antônio e a placidez e a segurança do peixe grelhado de Augusto. Aquela dúvida me remoía por dentro. Tudo o que eu queria naquela hora era exatamente o que eu havia evitado por tanto tempo: falar com Antônio. Eu precisava falar com o Antônio. Era o único meio de recobrar a serenidade da minha vida de música, poesia e peixe com alcaparras. Era o único meio de me recuperar os erros que cometera. Mas nossos erros do passado sempre cerceiam e constrangem nosso presente. Determinam-no, por vezes. Constantemente eles nos obrigam a não fazer o que pretendíamos, inclusive a errar no presente, pois nós mesmos nos alijamos da possibilidade de acertar. Estranho isso, né? E se acabamos por não conseguir acertar hoje, complicamos nosso amanhã. Porque nosso futuro é sempre dependente do que escolhemos agora. O desesperador é perceber, de repente, nossa vida descontrolada, fora do nosso próprio juízo e comandada por uma força externa e poderosa: o destino que escolhemos.

Quando abri a porta de casa, me deparei com uma cena horrível. Não contive um grito agudo de susto. Augusto estava caído no sofá, com a cara marcada dos murros do agressor. Antônio bufava como um touro, logo a sua frente, com os punhos cerrados com vigor. Sua expressão de raiva se relaxou quando me viu entrar. Disse, logo que entrei, entre arfadas exageradas:

- Desculpa, Cacá. Eu queria ir embora antes de você chegar.

A história começa aqui, enfim. Antônio tira uma pistola escura da cintura e aponta-a para Augusto, que jazia confuso e atordoado no sofá. Desnecessário dizer, entrei em pânico nessa hora. Entrei num pânico histérico, chorando, gritando e soluçando, sem conseguir dizer coisa alguma. Tão desesperada para falar tantas coisas ao mesmo tempo, precisando explicar tudo tão rápido, com tantas coisas atropelando minha cabeça que não consegui articular nenhuma palavra inteligível nesse momento decisivo.

- Te acalma Cacá. Vim falar foi com esse sujeito aqui. Não te mete.

Antônio estava tranqüilo, com a pistola firme na mão. Não desviava o olhar de Augusto para falar comigo, que estava ajoelhada na entrada, desfeita. Augusto foi lentamente se recompondo, pondo-se de pé. Tinha uma mancha de sangue no sofá.

- Cacá, tu conhece esse maluco? Me explica o que ele tá fazendo aqui, porra!

O máximo que consegui foi acenar afirmativamente com a cabeça, entre gritos e lágrimas.

Antônio deu um chute em Augusto e mandou-o parar de falar. Soltei um berro assustado quando seu corpo recaiu jogado numa poltrona, emitindo um som abafado. Antônio toma a palavra, com meu choro de pano de fundo. Cada uma daquelas palavras piorava meu sofrimento. Sentia-me incapaz de interferir na situação, no ânimo vingativo de Antônio, mesmo sabendo que ele precisava de minhas palavras para frear aquela loucura. E essa impotência é o que mais me deixa histérica, desesperada por minha própria passividade, pelo meu sentimentalismo tão total que me deixa inútil. Ali, chorando ajoelhada, agonizando.

- A vida é uma coisa estranha, né, cara? É o que a gente tem de mais valioso, e, quando vai ver, já foi. E o que somos sem ela? Nada. Entulho. Lembrança. Mas te digo uma coisa. Um podre como tu já é nada mesmo com vida. Tu conseguiu ser entulho antes de morrer, seu merda. Por isso não vou ter remorso, quando teu cérebro voar nesse sofá. Vou só legitimar o nada que tu é. Tirar a vida que tu não fez por merecer. E nem lembrança tu vai ser, porque ninguém lembra de lixo. Lixo passa com o vento.

Ansiada por fazer alguma coisa, me aproximei da janela, trôpega. Consegui berrar, com dificuldade, alguma coisa que fizesse parar Antônio, antes que aquele dedo sutilmente deslizasse no gatilho.

- Se tu... Se tu atirar... Eu pulo. Eu pulo!

O “apê-rtado” fica no décimo - segundo andar. Não sei o que me passa pela cabeça numa hora dessas. Só desespero.

Antônio instantaneamente abandona sua posição de atirador, com o braço esquerdo estendido segurando a pistola, e vai ao meu encontro, me segurando. Ele me abraça forte, falando no meu ouvido. Sinto encostar o cano gelado na minha nuca.

- Calma Cacá, calma. Tá tudo bem. Tu só tá nervosa agora, vai passar. Relaxa. Não faz essa loucura, por favor. Esse cara não vale nada disso. Não vale, não vale. Te solta desse suplício, meu amor.

Estava encolhida junto à janela, como uma criança assustada. Chorona, medrosa e incapaz. A isso me resumia. Só consegui menear a cabeça lateralmente, como que dizendo não.

- Vou te mostrar outra vida, Cacá. Tu vai ver. Tu não merece esse absurdo aqui. Tu é uma mulher maravilhosa, Carolina. Tu merece quem te ame de verdade. Tu merece só beijos, não porradas. Tu tá escutando o que tu dizendo, meu bem? Sai ali pro corredor. Tu não precisa ver nada disso. Eu entendo que deve ser difícil. Eu já te encontro ali. Num instantinho, tá bem?

Eu estava recuperando a respiração normal, com Antônio me enxugando as lágrimas. Sentia, naquele abraço e naquelas palavras, que atrás de toda aquela violência havia carinho, que se ele tinha uma arma engatilhada nas mãos era por me querer bem. E só por isso. Aquilo me enternecia um pouco. Aliviava a tensão daquela mão estendida com a pistola mirando Augusto. Abracei Antônio.

Com os olhos fechados, não percebi o que acontecia naquela sala. Só ouvi o estampido de um tiro. Gritei. O corpo que me abraçava amoleceu, flácido, frouxo, morto. Augusto empunhava um revólver com a mão direita, ostentando o semblante do assassino. Eu nunca soubera da existência daquele revólver. Antônio bufou sangue e caiu dos meus braços. Augusto tinha um olhar que jamais vira antes naquele rosto. Outros tiros se seguiram, fazendo o cadáver de Antônio se revolver no chão. Foram seis. Uma brutalidade. Augusto arfava, todo avermelhado, as têmporas salientes e a mandíbula projetada para frente, como um animal. Tinha uma expressão de violência e de força bruta que me apavorou, me fez estranhá-lo por completo. Sentia cheiro de alcaparras.

Aqueles cinco últimos tiros foram só pelo prazer de mutilar, de estraçalhar, de destruir. Só conseguia sentir medo e asco de Augusto, com aquele revólver na mão e a satisfação do assassinato na face. Era monstruoso. Era repugnante.

Me desconcertava a surpresa de que convivera os sete anos mais importantes da minha vida ao lado daquela raiva, daquele ímpeto bestial, daquela sanguinolência. Que aquele que escolhia minha música escondia de mim um revólver carregado.

Corri para longe daquele apartamento, entre lágrimas e soluços. Ouvia atrás de mim que Augusto me chamava. Corria mais rápido para não escutar nada.

Nunca mais. Essa era a única certeza que eu tinha em mente. Nunca mais conseguiria compartilhar a cama com aquele senhor, aquele homicida violento. Nunca mais beijaria aqueles lábios sem pensar no arfar e no pequeno sorriso que sucederam o disparo. Nunca mais olharia fundo naqueles olhos sem pensar no semblante assustador que atirou cinco vezes em um corpo morto. Nunca mais abriria a porta do apê da Eça de Queirós sem me lembrar da surpresa terrível daquele dia, sem que aquela cena me viesse à mente. Nunca mais me esqueceria da tranqüilidade de Antônio com a pistola e do conforto à janela. E nunca mais, nunca mais, me sairia da minha lembrança o trocar de olhares com Augusto, quando, confusa, levantei os olhos para encará-lo enquanto o corpo de Antônio caía desfalecido no chão.

Tudo isso me atormenta até hoje. A culpa. Os setenta e seis segundos se repetem na minha cabeça toda vez que fecho os olhos. Aqueles traumáticos segundos em que não consegui fazer nada, congelada pelo meu pânico. Segundos em que fui fraca, fui infantil, fui estúpida. Quando todo o destino dependia da minha racionalidade, do meu sangue frio, fraquejei. Pela minha sucessão de erros, o arrependimento cru.

Caso não tenha ficado claro até aqui, lhe explico que essa é a história da minha vida. Nunca mais consegui separar mentalmente o homem que eu amei do monstro. Desde aquele dia, vivi sozinha.

Das três personagens dessa história, duas eu garanto que morreram naqueles setenta e seis segundos. Da outra eu não posso falar, porque nunca mais o vi.



Sem comentários: