quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Infeliz aniversário

com bastante atraso, o texto sobre o mês de outubro de 2009.

Li certa vez um sábio historiador que dizia que os aniversários e datas comemorativas não são eventos passados, mas algo como um esforço presente para lembrá-los. Em outras palavras, ele dizia que não devíamos nunca desconsiderar quem lembra e quando lembra um aniversário histórico, para aí então buscar entender o porquê da comemoração.
No ano passado, os anarquistas comemoraram, com todo direito, o centenário da morte de Francisco Ferrer, um pedagogo catalão que dá nome à rua onde vivi boa parte da vida. Infelizmente, algumas semanas depois, a polícia civil do governo do Rio Grande do Sul realizou uma brutal invasão na sede da Federação Anarquista Gaúcha, apreendendo cartazes, panfletos, chapas de impressão e dois computadores, além de levar todo mundo para a delegacia. A ação da polícia estava baseada na denúncia de “calúnia e difamação” contra a governadora Yeda Crusius, que era denunciada pelo assassinato do sem-terra Elton Brum. Uma truculência como há tempos não se via. Nada além do óbvio para uma governadora que reza para o Banco Mundial, encarpetou o estado com eucaliptos e é referência nacional no combate à pobreza – combatendo-a com cassetetes, gás lacrimogêneo, algemas e um ocasional tiro nas costas.
Um dos aniversários mais célebres para nossa história oficial é a independência do país. O centenário comemorativo, em 1922, foi um ano excepcional. Apesar do estado de sítio, todos queriam mostrar que, cem anos depois, o Brasil achara seu momento para a verdadeira emancipação, para o amadurecimento, a auto-realização. Foi o ano do tenentismo, da semana de arte moderna, da fundação do Partido Comunista Brasileiro. Era necessário se livrar do marasmo agrário-exportador, ou da alta cultura regrada, européia, tradicional, parnasiana; ou ainda para se livrar da burguesia e criar uma pátria realmente livre. Cada um queria lembrar o centenário da independência porque lhe convinha, para reivindicar a si o novo. Isso acabou juntando os comunistas do PCB com Plínio Salgado, que se tornaria o principal nome do integralismo brasileiro. Mas o ano de 1822 poderia ser hoje lembrado por ter assistido, no dia do meu aniversário (eis porque meu interesse em lembrar), o último chicoteamento público na cidade de Edimburgo, Escócia. E o ano de 1922 foi também, como não lembrar, o ano de fundação da deliciosa erva-mate Lohmann, em Erebango-RS. Talvez a família Lohmann tenha mais facilidade de lembrar desse ocorrido do que o levante dos dezoito do forte em Copacabana, que iria abrir o caminho para os militares golpistas de 1964.
Nosso outro aniversário fundacional é o 1889, a proclamação da república. Ano em que fundamos os Estados Unidos do Brasil, federais como os Estados Unidos da América, com uma bandeira inspirada nos Estados Unidos da América, com apoio militar dos Estados Unidos da América, abolicionistas como os Estados Unidos da América e com a assinatura imediata de um acordo aduaneiro com os Estados Unidos da América.
No centenário da República, em 1989, o Brasil elege Collor. Em 1989, no centenário de uma república em que uns são mais iguais que os outros, é também o ano-marco do Consenso de Washington, que definia que o Brasil (man)tinha um voto de submissão aos Estados Unidos da América. Talvez seja melhor lembrar o ano de 1989 pela estréia dos Simpsons.
Assim, a violência do governo Yeda em 2009 me faz lembrar que, há cem anos, se encerrava o governo sanguinolento de Theodore Roosevelt nos Estados Unidos, o homem do grande porrete. O presidente que reivindicou o papel de polícia internacional aos Estados Unidos, o que, como disse Chomsky, é uma ofensa à polícia – que deve resguardar a lei e não pisoteá-la. Vendo os fascistismos da polícia militar gaúcha, faço questão de lembrar, sem comemorações, todos os autoritarismos do passado e todos/todas que, como Franscisco Ferrer (1909) e Elton Brum (2009), perderam a vida na luta. Lembro porque sei que esse não é um jeito “novo” de governar.