terça-feira, 19 de agosto de 2008

canzone del sole

Para Ana Júlia.


Um dos discos mais brilhantes dos Mutantes certamente é “Tudo foi feito pelo Sol” (1974), a começar pelo nome. O título do disco é tão polissêmico que oferece um sentido fácil, lógico, superficial, instintivo e agradável, como fazem a maioria das coisas realmente profundas. É um raciocínio plenamente racional, isto é, desculpável. Contudo, para além disso, há uma margem imensa para a fantasia, aberta e virgem, que não se oferece simples, mas sim fica disponível, a seu modo, para a curiosidade e para o espírito especulativo. Para o desejo de imaginar.
“Tudo foi feito pelo Sol” é claramente uma crença animista, uma exaltação ao perene e uma delicada submissão a uma ordenação máxima, divinamente mundana como o Sol. Para chegar a esse nível de abstração, comecemos pelo particular, pelo menor grão de areia, pelo concreto, pela unidade mínima que compõe o todo.
Em uma tentativa filosófica – e portanto humana – de refletir sobre o metafísico, a unidade primitiva é a vida humana. É ela que se encaixa, se explica e se concatena com a concepção geral, que buscaria, por sua vez, ser o arcabouço que dá coerência e objetivo à própria existência humana. Em outras palavras, é o homem – perguntando a si mesmo sobre sua vida, sua razão, seu lugar no mundo e sua existência coletiva – que constrói as mais diversas suposições cosmogônicas. “Tudo foi feito pelo Sol” é uma suposição cosmogônica.
A vida é, para cada um de nós, como uma queda livre em que o puxar o pára-quedas não é um imperativo. A segurança serena do avião ou do útero é abandonada de supetão, lançando o grão de areia humana em uma existência comprimida pelo tempo, em que a gravidade somente traz para baixo, nunca para cima ou para os lados. A queda é intensa e inevitável, pelo menos em um primeiro momento. Sempre há, claro, a opção do pára-quedas. Ele não muda a gravidade da queda, nem sequer altera o trajeto do indivíduo cadente, mas oferece – e isso pode ser crucial – segurança e estabilidade nesse mesmo trajeto. O movimento torna-se prolongado e controlado.
Há quem abandone o avião afobado, explore a gravidade em toda sua intensidade e faça da queda um arrebatamento extremo, um ilimitado estupro da vida, um gozo súbito.
Em termos cosmogônicos, essa opção é totalmente irrelevante. Não importa a intensidade, o estilo, a segurança ou a duração da queda. A gravidade é inexorável. Para todos os grãos de areia que desabam do céu. Nesse caso, a imagem que soa mais apropriada seria a de pingos d’água, e não de grãos de areia. Uma chuva de pequenas porções de vida, então. Células de existência humana arrastadas pela força de seu peso, sendo trazidas em uma grande tempestade até o solo, produzindo o suave ruído do choque, ricocheteando por instantes em gotículas esparsas e depois fazendo imensa e homogênea poça. Cada gota cadente está fadada a acumular-se em poça, pelo simples peso de sua existência. Toda a vida está fadada a extinguir-se, a agrupar-se com as demais vidas extintas e formar uma monótona uniforme poça de chuva. Um lago imenso de vidas extintas. Ao fim, todas as gotas são atraídas para a mesma poça.
É, no entanto, uma inferência apressada concluir que a gravidade é, na metáfora, a força vital e máxima, porque nenhum lago é estático. Nenhum lago é composto sempre pelas mesmas águas, uma vez que a chuva nada mais é que o lago em movimento, porque a chuva é o lago em outra etapa, porque a chuva se alimenta do lago e o lago se alimenta da chuva. Assim funciona a natureza.
Porque cada gotícula de água imiscuída na globalidade do lago recebe energia vinda do Sol. Cada molécula do lago, ao receber essa energia, faz-se mais ativa, intensificando seu movimento aleatório pelo líquido, excitando-se, agitando-se. O imenso corpo d’água não está morto. Conforme essas moléculas tornam-se mais ativas, elas transformam-se em vapor. Superam o limite de agitação do estado líquido e ganham uma forma menos palpável, menos concreta, menos sensível, menos tangível. A energia vinda do Sol faz com que o imenso lago das vidas extintas ganhe paulatinamente propriedades mais etéreas, e – como vapor, como vida extinta energizada, como morte ressuscitada – ascenderá evaporando ao céu. As moléculas excitadas de cada sopro de vapor irão, então, ocupar um espaço maior do que ocupavam no líquido, na poça, no lago; graças a essa dispersão, vapor é mais leve, muito mais leve que as gotas caídas da chuva e esparramadas no solo. E ele pode subir, fazendo troça da poderosa força de gravidade que todas as gotas arrasta para baixo. Subirá e subirá, como gigantesca nuvem de vapor ascendente, como uma infinidade de partículas excitadas, como gotas arrancadas da poça da morte pela energia despejada pelo Sol. E assim formar-se-ão os aglomerados de vapor d’água no céu. Eles são a forma latente de vida, e permanecerão nessa condição etérea de inexistência até que condensem em vida novamente, até que assumam de fato o peso suficiente da gota e recomecem a cair em virtude desse peso. Então assumirão a forma efêmera da vida humana coagida por essa gravidade inexorável, e terão a ingênua liberdade de dispor de sua queda a seu bel prazer. Mas sua existência está condenada a ser concreta. A ser finita. E ela será, ao fim e ao cabo, somente um movimento passageiro da monumental sonata orquestrada pelo Sol, fonte real de toda a perenidade. Nesse arranjo cosmogônico, as gotas são só gotas, e o vapor é só o vapor; a chuva é o lago e o lago é a chuva. E o Sol é a força vital, é a garantia de todas essas equivalências. Garante que a poça acumulada das vidas extintas não seja a morte irrevogável, mas que a poça, a gota e a nuvem sejam estágios sucedâneos em um ciclo. Garante que a gravidade não seja apenas o carrasco dos que vivem, mas também, e concomitantemente, o místico ascensor dos etéreos para uma nova queda.
“Tudo foi feito pelo Sol” não significa que todas as formas vivas emanaram – em passado perfeito – da energia solar. Não sugere a linearidade. Significa que todo o arranjo metafísico amplo, de que nossa queda é apenas parte, é e foi ditado pelo Sol, em uma reprodutibilidade perfeita. A ele devemos a ordem oferecida pela natureza, o sentido de perpétuo, a razão e a lógica de que tanto carecemos.
“Tudo foi feito pelo Sol” – além de ser uma sugestão cosmogônica e um grande álbum dos Mutantes – é um convite à imaginação.