segunda-feira, 9 de junho de 2008

Consumindo.

(delírio sobre discussões insensatas de uma aula de sociologia)



O primeiro motivo pelo qual a sociedade contemporânea pode ser chamada de consumista é que, quando falamos de consumo, podemos nos referir a todos os aspectos da própria vida. O consumo não é uma variável económica, a menos que reduzamos a cultura à economia ou a economia à cultura. E o consumo não é uma variável cultural, se isso existir, pelo mesmo motivo. O facto de consumirmos batatas congeladas, ideologias, jeans, teatro, alfaces ecológicas, lasanhas congeladas, os beatles, ensino privado, a decoração de um bar, ervilhas congeladas, atum enlatado, segurança urbana, a Capela Sistina, a limpeza de um animal de estimação ou uma partida de futebol é, em si, nossa forma de estar no mundo. Curiosamente ou não, eu não tenho um estilo de vida, mas eu o defino com base nas minhas escolhas, isto é, eu o consumo. Como escreveu Boaventura de Souza Santos, “o conceito de consumidor substitui o de cidadão, e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência”. A alocação de meus recursos define a visão do outro sobre mim, assim como minha impressão do espelho e com o travesseiro.

A primeira pergunta é: como essa espécie de consumismo totalizante nos contagiou? A resposta não é simples, mas pode ser simplificada. Iniciamos a chamar-nos homo habilis quando a destreza foi nossa característica determinante; passamos a chamar-nos homo erectus quando nossa postura nos definia; evoluímos a homo sapiens quando a sabedoria era nossa especificidade; por fim, chamamo-nos homo economicus quando o consumo é nosso traço distintivo último.

O homo sapiens é, por definição, um ser racional. O homo economicus é, por definição, um ser racional e livre. Agindo em um mercado perfeito de concorrência perfeita, o estágio último da evolução humana usufrui de toda a liberdade possível, ou seja, toda a liberdade que sua racionalidade permite. Dotado de recursos limitados, ele se dirige a esse mercado e maximiza seu bem-estar. Imaginem o gozo que isso significa. Assediado de todos os lados por sedutoras ofertas de múltiplos ofertantes, nosso evoluído homem desfila por esse mercado com total autonomia para decidir onde gastar seu dinheiro, se pretender gastá-lo, quando gastá-lo e com o quê gastá-lo. Constrangido, contudo, pelo seu calculismo racionalista, esse ser supremo está fadado a sempre fazer as opções certas, escolhendo sempre o preço mais interessante, assim como as quantidades respectivas de batatas congeladas e de beatles que lhe oferecem mais bem-estar.

O Homo Economicus só não é a redenção final da espécie humana porque ele nunca existiu. Ele foi imaginado pela sapiência de alguns homo sapiens, para os quais foi interessante transformar os outros homo, nem tão sapiens, em entidades psicologicamente dependentes, economicamente activas e filosoficamente apáticas. Daí nasceu o consumidor moderno. Foi prometido ao homo sapiens, na altura, que ele poderia desfrutar não só de sua racionalidade, já demodé, mas também de uma liberdade infinita de escolha e de um bem-estar máximo. Tudo isso em um mesmo pacote.

Com esse bom argumento em mãos, já era possível considerar todo o mundo exterior como uma realidade consumível, ou, em outras palavras, disponível para esses novos agentes humanos fazerem suas escolhas. Visto pelo contrário, esses mesmos homens não tinham acesso natural a mais nada e nem a tudo, a não ser que escolhessem algo desse tudo e “desescolhessem” algo desse nada, isto é, a não ser que consumissem. O princípio fulcral dessa dinâmica chama-se “custo de oportunidade” pelos entendidos. Ele significa avaliar as escolhas feitas com base nas oportunidades renunciadas. Com isso, tudo passou a implicar um custo: eu próprio ficar parado é consumir, passar uma tarde dormindo é consumir e passar três dias fazendo festa é consumir. O preço desse “lazer” é o dinheiro que eu poderia ganhar caso estivesse trabalhando remuneradamente durante esse tempo. Mais o preço da bebida, no último caso.

Até aqui, espero que tenha ficado claro que a lenda do homo economicus conferiu universalidade e totalidade ao consumo. Para além disso, o consumo ganhou um retorno simbólico, quando ele passou a definir esferas tão identitárias do consumidor, pois, como diz o slogan do Unificado, “você é o resultado de suas escolhas”. Consumimos porque não sobrevivemos sem o fazer. A maneira particular como o fazemos é o diz a nós mesmos quem somos.

O segundo motivo pelo qual podemos chamar a sociedade contemporânea de consumista é que o elemento cultural em geral prevalece ao imperativo económico, isto é, o critério subjectivo de identidade vai além do critério objectivo da necessidade. Isso faz com que a lógica da extravagância, antes restrita à aristocracia, ganhe uma feição de massas, ao custo de um endividamento de massas, mas também de uma produção em massa. Ultrapassando a funcionalidade, os produtos consumidos são empregues em relações sociais de pertença e exclusão. Além do valor de uso, as mercadorias trazem a cargas psicossocial dos valores e das ideias que lhe subjazem. Uma fracção pequena do preço de um ténis de muitas molas serve para cobrir o mecanismo globalizado de exploração de mão-de-obra infantil nas Filipinas; o resto está remunerando o estilo de pisar, o status de uma marca e o Ronaldinho, o Cristiano Ronaldo e o Michael Jordan. Pendurar correntes de prata brilhante no pescoço de alguma forma materializa a pretensão masculina de que as mulheres comportar-se-ão com a extroversão erótica dos videoclipes dos rappers comerciais estadunidenses.

Contudo, isso tem facetas mais complicadas. Uma vez que não foi deixada ao homo sapiens nenhuma esfera de existência desligada do consumo, ele busca na realização material desse consumo a justificativa imediata da sua existência. Cada vez que consome, o indivíduo vê a sua preferência, a sua escolha, a sua personalidade a se manifestar, uma vez que há múltiplos ofertantes lhe assediando e sua opinião é decisiva. Assim, o consumo compulsivo emerge como uma prática de afirmação individual totalmente irracional. Curiosamente, a racionalidade que o homo sapiens detinha lhe foi subitamente solapada pelo estímulo incessante irrazoável de consumir, pela dimensão que essa prática assume e pela natureza impulsiva do desejo. “O desejo do consumo não deseja a satisfação. O desejo deseja o desejo”, segundo Zygmunt Bauman, um dos poloneses ilustres desse século XX.

Assim, a figura do ex-homo sapiens como agente económico já mudou um pouco. Dotado de restrição orçamentária, ele se dirige a um mercado perfeito e é assediado por múltiplos ofertantes em concorrência perfeita: estimulado por todos os lados, por cores, sons, botões luminosos, controles remotos e imagens sedutoras, nosso consumidor mal sabe para que lado correr. Em seu ímpeto de saciar seu desejo de potência (como afirmação de sua capacidade de consumir) e de reconhecimento pessoal (como ideias que signifiquem sua individualidade), ele acata aos apelos de múltiplos ofertantes, saindo do mercado metafórico com sérias dívidas. A sublimação freudiana desse cenário é um shopping center contemporâneo.

O shopping é o lugar por excelência onde não se vai atender necessidades, mas sim estar-se disponível para apelos de consumo impulsivo. Já que o tempo nesse caso favorece o ofertante – e não o consumidor calculista –, são adoptadas estratégias de confinamento, como a baixa exposição ao ambiente externo, escassez de saídas e a carência de relógios visíveis. Quando há relógios, eles não favorecem a leitura, como no caso do Iguatemi. Além de compulsivo, esse confinamento tem principalmente um lado voluntário-induzido, ou seja, transmitindo a sensação de que não há um lugar mais agradável que aquele para se estar, em seu tempo de lazer. Seguranças parrudos, ar-condicionado, mobilidade automática, estacionamento, bancos para sentar, bancos para retirar dinheiro, decoração, playground para as crianças não encherem o saco e até um cenário invernal de natal no verão. Duas tácticas complementares de confinamento para ajudar o impulso a se manifestar. Com isso, a opção pelo ócio ganha tanto a feição de consumo passivo, ecónomico, como de consumo activo, cultural.

Paralelo a isso, há a esfera da propaganda. Tal qual o shopping busca subtilmente, ou não, convencer o homo sapiens a permanecer em seu interior, a propaganda busca subtilmente, ou não, convencer o homo sapiens a comprar o seu produto (shopping). Realmente não sei se o que mais impressiona é o despudor com que fazem isso ou o sucesso que obtém em sua tarefa. A abordagem é tão explícita que os anunciantes tratam os reles mortais no imperativo – arbitrariamente, porque não. Dou uns exemplos conhecidos: “beba Coca-Cola”, “abuse e use C&A”, “compre batom”, “faz um 21”, “conte comigo”, “just do it”, “experimenta”, “vem para Caixa você também”, “keep walking” e o intrigante “think different”. Depois que Goebbels conseguiu o que conseguiu, não tem por que não acreditar que a repetição incessante de uma ordem vai penetrar as mentes. Se o shopping usa a carência de saídas como mecanismo directo de confinamento e as comodidades com ar-condicionado como táctica indirecta, a propaganda usa o imperativo como abordagem mais agressiva, enquanto junta a adulação do consumidor com a idealização de sua vida como expediente mais subtil. Nesse caso, os múltiplos ofertantes sussurram no ouvido do homo sapiens: “Vivo é você em primeiro lugar”, “feito para você” (Itaú), “sua vida ainda melhor” (Credicard City), “o tempo todo com você” (Banco do Brasil), “Viver sem fronteiras” (TIM), “Tem coisas que só a Philco faz por você” ou “porque você vale muito” (L’Oréal).

Então dê alguma atenção a isso: nosso agente econômico, irracionalmente impulsivo, tem agora uma outra situação para fazer as escolhas que substanciam sua identidade. Primeiro, ele é compelido e seduzido a ficar indefinidamente em um espaço onde sua irracionalidade é constantemente estimulada; segundo, ele não só recebe insidiosas ofertas (de produtos, mas principalmente de materializações de sua vida ideal) como também recebe ordens expressas para comprar, no imperativo. E ele acaba comprando.

Agora basta enunciar o que já está evidente: não há propriamente liberdade nas decisões de um consumidor nessas condições. Os múltiplos ofertantes em concorrência perfeita, em seu afã de trazer para si os consumidores impulsivos, organizaram um grau de histeria consumista que a promessa de liberdade infinita de escolhas, introjectada na lenda do homo economicus, é pateticamente irreal. Real, talvez, como um argumento ideológico. Do sentido amplo de liberdade (económica), restou somente a liberdade de escolher a marca que mais nos identifica, a casa de veraneio que mais combina com nosso estilo de vida. É excessiva cegueira não perceber a mudança. Só não percebe a farsa da promessa de liberdade infinita o consumidor que ainda persiste na busca do bem-estar máximo, pois, nas palavras de Rosa Luxemburgo, “aquele que não se movimenta não sente as correntes que o aprisionam”.

Sim, porque é evidente que a suposição do bem-estar máximo é a última a desabar, como não poderia deixar de ser. É simples: um consumidor, entendido no sentido amplo, não pode maximizar sua felicidade (seu bem-estar, sua satisfação, sua “utilidade”) se for desprovido de sua racionalidade e de sua liberdade. Ele consome obstinada e obedientemente, acreditando que o que ele ainda não tem poderá o fazer mais feliz, que há logo ali um computador mais potente, um carro mais confortável, um celular com mais opções, uma calça jeans da moda – e em cada uma dessas coisas ele poderá escolher qual o modelo ou a marca que mais lhe agrada. Constantemente é atribuída a Confúcio – não faço ideia quem seja o autor, não importa – uma máxima que diz: “o excesso e a carência são ambos um defeito”. É perfeitamente concordável. Mas para mim parece que o excesso e a carência são a mesma condição. Ter a sensação de ter alguma coisa – um objecto, uma prática, uma emoção, uma pessoa – em excesso, significa que alguma outra coisa está faltando, que existe uma carência de outra natureza. Quando percebemos que há uma proporção exagerada de algo que está a nosso alcance, é porque essa abundância não é capaz de substituir uma outra necessidade essencial, para a qual estamos pobres. É isso que acontece com o ex-homo sapiens como consumidor: a fartura material que lhe é empurrada goela a dentro no mercado hipotético não maximiza seu bem-estar porque há uma carência de um sentido mais profundo nessa obsessão. Ainda que seja compelido a agir por impulso quando consumidor, o ser humano ainda é um agente intelectual, porque sua racionalidade jamais poderia ser subtraída sumaria e totalmente. Assim, quanto mais satisfação material ele obtém dos produtos que adquire, mais esse conforto material perde valor em relação à esfera imaterial, que se manifesta como a contrapartida de carência da sua condição de abundância. Um honesto economista do século XIX enunciou o princípio geral, que ficou conhecido como “lei dos retornos decrescentes”. Segundo essa “lei”, os retornos que eu obtenho não são constantes, mas progressivamente diminuem em proporção, conforme a quantidade aumenta. De forma mais concreta: sapatos realmente podem trazer muita felicidade a uma pessoa que não possua nenhum; dar a essa pessoa um segundo par de sapatos irá aumentar seu bem-estar, mas não tanto quanto o primeiro; o décimo par de sapatos afectará em pouco seu contentamento.

Assim, o que se convencionou chamar de depressão é somente o estado de espírito resultante de um grande desequilíbrio entre fartura e carência e da incomunicabilidade entre diferentes dimensões do homo sapiens. Um dia desses vi uma manchete de jornal que dizia: "Japonês farto de tudo esfaqueia sete pessoas". É evidente que ele não estava literalmente "farto de tudo", senão não teria feito essa barbaridade.

O resultado desse rodeio todo é que a proposta do homo sapiens tornar-se um homo economicus, dotado de liberdade e bem-estar máximo, foi um meio dos “múltiplos ofertantes” tornarem os “múltiplos consumidores racionais” um contingente mais manejável. Além da promessa de liberdade e bem-estar serem falsos, nesse negócio os homo sapiens acabaram perdendo sua própria racionalidade, quando imersos em sua condição de consumidores.

Mas, vejam com um pouco de calma, isso não é estático. Como disse antes, o ser humano, sapiens, pode agir por instinto ou impulso, mas não pode deixar de ser uma entidade pensante. E ele só está em condição desfavorável na sociedade consumista porque aceitou a proposta feita pelo ofertante, que por sua vez zela por seus próprios interesses. Contudo, como entidade pensante, o mesmo consumidor tem a capacidade de ele próprio sugerir um novo acordo, em que ele próprio seja o zelador de sua racionalidade e de sua liberdade. Ele faz isso impondo-se como um consumidor livre e consciente, isto é, disposto, como ponto de partida, a julgar as ideias que está consumindo. Nesse novo acordo, os ofertantes passam a estar obrigados a vender ideias que satisfaçam a consciência dos consumidores, e isso pressupõe a existência de sua racionalidade (não só económica, mas total). Assim o homo sapiens pode afirmar sua sapiência não contra o consumo (o que é ingenuidade), mas através do consumo.

Não estou dizendo que essa forma de comportamento económico é o novo caminho para o “bem-estar máximo”, porque ninguém cai na mesma lábia duas vezes, ainda que a eleição de Collor para o Senado me coloque algumas dúvidas. O consumo crítico, o consumo de mundividências, o consumo consciente é uma alternativa possível, uma sugestão. É uma ideia que está sendo colocada no mercado das ideias, e que, como mercadoria, já pressupõe que consumidores pensantes frequentem esse mercado. Pasmem: o bem-estar máximo não existe.

1 comentário:

Zizi. disse...

Ótimo de se pensar a partir do teu texto. Parabéns pela desenvoltura!