quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Uma Invenção Holandesa

Texto que anda circulando no Jornal da Universidade do mês de Outubro.



Outra guerra, tão onerosa quanto à do Iraque, está prestes a ser travada pela administração Bush, em seus últimos meses na Casa Branca. Apelando ao Congresso por US$800bi para comprar títulos de empréstimos insolventes, o governo republicano busca estabilizar o mercado financeiro do país, à beira do colapso graças a uma expansão irracional do mercado imobiliário norte-americano e do crédito de alto risco (sub-prime). A insegurança vem aumentando junto com o desemprego, e o valor das ações vem caindo junto com a confiança no dólar como reserva de valor.
No livre mercado das palavras, aquela com mais demanda no momento é “crise”. Para empregar a terminologia correta a previsão é de pindaíba braba, e, nos jornais ou na televisão, é tempo de entrevistar economistas. São necessárias, com urgência, vozes sóbrias e de paletó para explicar o que está acontecendo no mundo, quão fundo é o buraco onde estamos nos atolando e por que ele era tão previsível, natural e evidente que ninguém pôde evitá-lo.
A primeira fonte de crise está nas idéias. Há algum tempo, economistas americanos encontraram uma via de ouro para a prosperidade global e para os países pobres, chamando-a de Consenso de Washington. Um tempo depois, pensadores insatisfeitos desses países pobres concordaram unanimemente em uma via alternativa, criando o Consenso de Porto Alegre. E, mais tarde ainda, começou a se falar em Consenso de Pequim, porque a China parece sugerir (com escassas palavras) um outro caminho consensual para o sucesso e a redenção econômica e social.
Sabendo o que consenso significa, esse pipocar de consensos aqui e acolá só pode nos dizer que não há consenso algum, nem aqui nem acolá.
Mas falemos do primeiro “consenso”, porque afinal é esse que está desmoronando a olhos vistos. O Consenso de Washington apregoou uma economia liberal e privatizante como dogma e como verdade técnica. Mantendo a fé no equilíbrio em longo prazo, promoveu mudanças em um prazo curtíssimo, numa terapia de choque para colocar os países perdedores no caminho indefectível do sucesso. Alvos desse choque, os perdedores não criaram os Estados liberais e não-intervencionistas que o Consenso esperava, mas sim Estados colapsados, burocráticos, intervencionistas, ineficientes, e sem a menor capacidade estrutural de regulação e planejamento, nem sobre o capitalismo, nem sobre a sociedade.
Não surpreende que o ataque terrorista contra os EUA tenha se dirigido ao World Trade Center, símbolo de 25 anos de neoliberalismo, e não ao Empire State Building, ícone de um século de hegemonia.

Fundamentalismo caduco – Os mentores do Consenso de Washington contaminaram boa parte do mundo com a premissa de que “não existe almoço grátis”: se você recebe qualquer serviço do Estado, esse serviço estará sendo financiado pelos demais contribuintes, e não é função legítima do Estado o papel de Robin Hood.
Só que esse fundamentalismo de mercado foi caducando. E, conforme as opiniões afastavam-se dos neoliberais de Chicago, eles foram ficando cada vez mais radicais. Um deles – chamado K. Rogoff e, na verdade, de Harvard – chegou à conclusão mística, estapafúrdia e matemática de que o equilíbrio de mercado no longo prazo seria atingindo em cerca de 75 anos. Significa que a atual crise, que está fazendo todos correrem aos economistas de paletó, estará totalmente resolvida em 2083. Até lá, a oferta de empréstimos irá se adequar a uma demanda segura, sob uma taxa de juros justa, o déficit comercial dos Estados Unidos estará sanado e seus impostos protecionistas, e os economistas, já não serão necessários, graças ao equilíbrio geral. Não é fantástico?
Porém, será que a economia de 75 anos atrás está em equilíbrio hoje? Se olharmos para 1933, encontraremos a maior crise da história do capitalismo norte-americano, com a falência de 85 mil empresas e 4 mil bancos, um sem-fim de desempregados, ações despencando na bolsa ao mesmo tempo em que as pessoas despencavam dos prédios. A atividade da industrial caíra à metade. Naquele mesmo ano, o presidente Franklin Delano Roosevelt pôs uma pá de cal no liberalismo, com um programa de gasto público massivo, emitindo moeda para reerguer uns estados nem tão unidos e nem tão da América. Ainda em 1933, estava sendo lançado “King Kong”, a única e lúdica ameaça ao Empire State.
Logo antes das coisas desabarem, Wall Street estava em êxtase. Durante os “loucos anos 20”, a euforia era tanta que comprar alguns papéis de empresas, para depois vendê-los mais caro, era bem mais lucrativo e bem menos arriscado do que produzir algo concreto. E assim armou-se a catástrofe: em 29/10/1929, a bolsa quebrou.

Especulação e desastre – A bolsa de valores – essa combinação de risco, expectativa, agonia e êxtase – foi uma invenção holandesa, e tem esse nome graças a um nobre e rico sujeito chamado Van Der Burse (bolsa). O que hoje conhecemos por especulação também surgiu naquele país, que, com sua roleta capitalista e seus apostadores inveterados, sentiu os louros e os agouros da sua criação. O desastre mais famoso foi o das tulipas, ocorrido no século XVIII em Amsterdã. Altamente procurados, os bulbos das flores eram comprados por preços exorbitantes, e logo vendidos por preços mais altos, porque o comprador sabia que poderia vendê-los ali adiante por um valor ainda maior, ganhando muitos florins sem grande esforço. No frenesi da tulipamania, um só bulbo chegou a valer cerca de 25 toneladas de trigo, e já se negociava inclusive os bulbos ainda não plantados. Mas, um belo dia, por um capricho do mercado, o bom senso disse que uma tulipa não valia 25 toneladas de trigo, e se recusou a pagar esse absurdo. Então os apostadores foram obrigados a perceber que havia um mundo real, no qual uma tulipa valia só uma tulipa, e quem tinha investido fortunas nelas agora não tinha nada. E então se falou de crise.
Um observador atento, analisando a euforia dos holandeses do século XVIII ou dos norte-americanos dos anos 20, poderia diagnosticar a instabilidade da situação com a metáfora da “exuberância irracional”. Só que essa figura de linguagem foi introduzida pelo presidente do Banco Central dos EUA em 1996, e então começamos a entender por que estão falando tanto em crise nos últimos meses. Na crise corrente, em vez de comprarem bulbos de tulipas ou papéis de empresas, os norte-americanos entraram numa espiral ascendente com os empréstimos para o consumo, com as hipotecas de imóveis. Agora a bronca caiu pra cima dos bancos e das seguradoras de empréstimos, e, se os bancos falam em crise, a crise geralmente acontece. O desemprego aumenta e a produção diminui.
O mercado, infelizmente, não se equilibrou nos últimos 75 anos. E Rogoff, nosso profeta, está agora defendendo que o governo deixe quebrar os bancos e as seguradoras irresponsáveis. Ele só não conseguiria quebrar 4 mil bancos novamente porque hoje o número dessas instituições nos EUA é bem menor.

Socialização de prejuízos – O Federal Reserve pretende gastar quase um trilhão de dólares para salvar os grandes bancos dos Estados Unidos. Gastando dinheiro público para tirar a economia do atoleiro, como Roosevelt fez há exatamente 75 anos. Mas o atual pacote de Bush guarda diferenças do new deal de 1933. A preocupação de Bush não é socorrer uma população faminta e desempregada, mas sim os principais bancos do país, socializando o imenso prejuízo. E aí se revela um quê socialista do Consenso de Washington: ou a sociedade corre em auxílio bilionário aos bancos, assumindo altruisticamente suas dívidas, ou entra em recessão, e os mutuários perdem as casas. Não existe almoço grátis, a menos que você seja dono de um banco. Nesse caso, deixa de ser importante quem está pagando o almoço.
Em situações de crise, há sempre os otimistas e os economistas. No Brasil, parece que os primeiros estão em alta: “Essa crise é do Bush, não é minha”, disse Lula em setembro. É uma cautela compreensível, pois se o presidente da República diz que a tulipa vale só uma tulipa, ninguém pagará por ela 25 toneladas de trigo ou coisa do gênero. Contudo, socializando o otimismo, Lula tem sempre o limite do factível. No filme A vida é bela, Roberto Benigni mostra que até em um campo de concentração podemos subverter e recriar a realidade através da forma como a encaramos. Mas essa posição brasileira de faço-que-não-é-comigo pode ser arriscada, especialmente se o céu cair sobre nossas cabeças, economicamente falando.
Alguns dias depois da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, o presidente dos Estados Unidos declarou tranqüilamente que “o setor mais fundamental do país, que é a produção e distribuição de commodities, está em uma base estável e próspera”. Em outras palavras, não havia crise. E o presidente era Hoover, e não Benigni.
O trunfo da ciência econômica é explicar coerentemente os acontecimentos depois que eles ocorreram. O estouro da bolha especulativa nos Estados Unidos após a Nova Economia dos anos 90 tem uma explicação racional e precisa, mas também havia pelo menos duas ou três outras explicações previstas no modelo, caso o projeto de crescimento dos EUA pós-Guerra Fria tivesse trilhado rumos diferentes.
A questão de fundo é uma combinação explosiva de ignorância e arrogância. Há sempre a possibilidade de explicar a realidade através de um sistema de equações matemáticas e mostrar, com sobriedade e paletó, as razões e as dimensões do problema. O desafio das crises não é explicá-las, mas sim evitá-las ou minimizá-las. O Consenso de Washington está desmoronando porque não é capaz de dar 25 quilos de trigo por cada tulipa que vendeu, porque não pôde frear a irracionalidade da exuberância, porque foi obrigado a virar do avesso sua verdade técnica para adequá-la ao mundo real.
Bush disse, para defender a injeção de 800 bilhões no mercado imobiliário, que seu primeiro instinto foi “deixar o mercado agir por sua conta”, mas que depois percebeu que “era necessário agir”; ou seja, primeiro é preciso fomentar a crise, para só depois enfrentá-la com um bilionário almoço grátis. Assistindo a renitência desse consenso técnico e fundamentalista, só se pode dizer que nem sequer o mercado das idéias equilibrou-se nos últimos 75 anos.

sábado, 4 de outubro de 2008

Cultura Brasileira

Para dar um agitada no mês de outubro, digitei uma prova de Cultura Brasileira, de um ano atrás. Fiz mudanças discretas, mas irresistíveis ao datilógrafo. Até pensei em dar uma descontraída na linguagem, mas no fim achei melhor não mexer, porque tô enferrujado no assunto.


A idéia aqui é comparar as visões de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Hollanda sobre o Brasil e o brasileiro, tentando mostrar, além das especificidades de cada autor, os pontos de contato das duas abordagens. Cada um deles dá um enfoque diferente à questão nacional – o primeiro aplicando o instrumental teórico marxista e o segundo cruzando antropologia cultural com sociologia – e, obviamente, chegam a conclusões diferentes, mas nem tanto, sobre a condição do país nos emblemáticos anos 30.
O marxismo que inspira Caio Prado é o marxismo vivo, o marxismo que não sucumbe à história, aquele que, muito pelo contrário, só faz sentido a partir dela. A preocupação do autor não é transplantar um modelo conceitual e abstrato de revolução para o Brasil, mas sim compreender, a partir do estudo histórico, as especificidades dessa formação socio-econômica, a teleologia própria da evolução do nosso povo e, somente a partir disso, as possibilidades e limitações da transformação social brasileira. Por isso, a “linha mestra” da história do Brasil é o fio condutor da análise de Caio Prado, e é em busca dela que o autor regride ao período colonial.
A proposta panorâmica de Caio – o “sentido da história” – se reflete numa ampliação do campo de estudo da colonização por Portugal. Para o autor – e isso foi absorvido como lugar-comum na historiografia nacional –, não podemos analisar a “colônia-Brasil” se não a inserirmos no quadro mundial do capitalismo mercantil, no contexto das grandes descobertas e da ascensão da burguesia européia. Sem empregar a terminologia atual, Caio Prado Jr. argumenta que o Brasil é somente uma peça de um “sistema-mundo”, de uma estrutura econômica-política, de um movimento que atrelou a América à Europa como apêndice involuntário e subordinado. Assim, a relação do Brasil com a metrópole era sempre ditada pela força do capital; as formas de ocupação humana na colônia dependiam somente da viabilidade de se auferir maiores ou menores lucros: o caráter da colonização é, em sentido estrito, empresarial. Disso fica evidente que não há nenhuma preocupação com o povoamento e com a sociedade brasileira que ultrapasse o discurso metropolitano. Esse descaso com um projeto civilizador é, para Caio Prado Jr., um elemento constitutivo essencial do desenvolvimento de nossa nação. Isso se dá claramente em contraste com as colônias temperadas do norte, que atraíram da metrópole colonos ávidos por reconstruir no Novo Mundo a sociedade de que haviam sido alijados com a intolerância religiosa, o Estado autoritário e o cercamento dos campos. Migraram para povoar.
As colônias de exploração são, pois, sociologicamente marcadas pelos meios para a acumulação às suas custas. O emprego do cativo africano e a preponderância da estrutura familiar patriarcal-autoritária instituíram-se de tal forma na vida social brasileira que nem a abolição da escravatura nem a proclamação da República apagaram de nosso espírito nacional. Mais do que isso, serviram como meios para conservar o perfil de dependência e subordinação da sociedade brasileira, incapaz de se reerguer pelos vícios historicamente impregnados em sua base. Como veremos adiante, a análise de Caio Prado não se encerra nesse pessimismo fatalista.
Passemos, antes, a Sérgio Buarque de Hollanda e as “Raízes do Brasil”. O mote essencial de sua análise socio-cultural brasileira é a adaptação de um modelo de sociedade burguesa-democrática europeu a um país historicamente colonial, escravocrata e agrário-exportador. O resultado desse descompasso entre o ideal e o real seria, para Sérgio Buarque, a feição mais particular da sociedade brasileira.
Como a família (incluindo parentes e agregados do latifundiário) é o núcleo social, politico e econômico da ocupação do território nacional, o princípio familiar tende a ser a referência maxima para as relações sociais. No entanto, Sérgio adverte para a diferença qualitativa entre família e Estado, e para o inevitável choque entre o primado humano, direto e emocional da família com a lógica abstrata, impessoal e supra-humana do Estado. Isso implica que as esferas do público e do privado tendem a se confundir, e o propósito objetivo do Estado e do Direito se perde na manifestação do indivíduo passional, do sujeito ativo e do interesse particular. Isso não se restringe ao Estado, pois todas as formas abstratas de interação social – imprescindíveis à coerência do ideal liberal-burguês – como o contrato e a troca livres, o voto, a concorrência interpessoal, a igualdade juridical, etc. são tergiversadas pelo ímpeto personalista da cultura brasileira.
Entendendo esses dois eixos antagônicos, compreendemos por que a análise buarquiana é prioritariamente lusitana: são os portugueses que trazem a cultura européia, são eles os colonizadores europeus e os promotores da modernização; mas são eles, também, que trazem o culto à personalidade, a hierarquia hereditária e o espírito do ócio e da aventura que perverteriam essas mesmas instituições. O entendimento de Sérgio Buarque sobre a cultura brasileira é, em última instância, a remodelagem do elemento português com as condições do ambiente tropical, da sociedade colonial e da interação racial com o negro e com o índio.
A questão do colonizador luso conduz Sérgio a diagnosticar vários dos vícios que retardam a modernização brasileira na sociedade portuguesa, em suas origens. O fato da burguesia não romper propriamente com a nobreza tradicional acarretou de valores feudais na mentalidade do colonizador, como a exaltação do ócio e da contemplação, o gosto pelo conhecimento livresco e abstrato e a supremacia do destino sobre a ação dos homens. O resultado desse substrato cultural para o processo de colonização é o ideal da aventura, do ganho farto sem trabalho árduo, do colher onde não plantou. A civilização brasileira, por isso, teria de nascer da soma aleatória de várias ambições particulares e seu povo jamais compartilharia o ideal protestante do trabalho recompensado, do ganho construído, do acúmulo previdente.
No entanto, Sérgio é otimista frente a modernização brasileira. Ele crê no processo, crê no amadurecimento socio-cultural do brasileiro a longo prazo, crê que estamos nos desligando de nosso passado obscurantista e incorporando o ethos moderno – a substância das instituições. A República e a Democracia transcenderão seu caráter formal, pois serão introjetadas na forma de pensar do brasileiro. Nisso se assemelha a solução idealista de Caio Prado Jr. para a superação de nosso atraso, que é a qualificação do povo, a saúde, a cultura e a educação para os “negros boçais” e os “índios apáticos” que são a base que se levantaria, o “corpo inorgânico” que se tornaria “orgânico”, functional, útil. Caio também apresenta uma solução “materialista” – mais presa ao esquema marxista ortodoxo que à história brasileira – na qual defende que as contradições sociais resultants dessa situação de submissão e exploração concluiriam numa nova fase para o Brasil, num novo Brasil.
Emparelhar pontos de contato nas duas interpretações nos leva obrigatoriamente a reconhecer a semelhança entre os tipos-ideais “trabalhador” e “aventureiro” de Buarque com a distinção entre colônias de povoamento e exploração no estudo de Caio Prado. É evidente que a colonização nas regiões temperadas foi empreendida por homens muito mais afeitos ao trabalho que à aventura, à estabilidade que ao risco, ao esforço lucrativo que ao perigo lucrativo.
O inverso é igualmente evidente. A colonização no hostil clima tropical atraiu os europeus com o ímpeto do lucro imediato do comprar barato e vender caro, com o desejo (e o poder) de mandar em escravos, não de trabalhar.
Outro ponto de contato que é importante perceber é a preocupação de ambos com o Brasil em relação ao mundo. No caso culturalista de S. B. H., isso se manifesta pelas idéias de vanguarda do mundo norte-atlântico, pelo atraso da sociedade brasileira em relação ao funcionamento institucional e cultural de um modelo de sociedade que Sérgio se propõe a defender (é época de nazifascismo e da III Internacional). No caso de Caio Prado, isso se manifesta pela preocupação analítica com a inserção brasileira no capitalismo mundial e o que isso implica para sua existência.
Passando às divergências interessantes entre os dois autores, podemos perceber, à primeira vista, uma distinção de abordagem: o culturalismo é influenciado pela antropologia cultural norte-americana e por Weber (principalmente em suas visões de poder, Estado e método); o marxismo é influenciado por Lênin (e sua teoria do imperialismo) e por Florestan Fernandes. Mas essa distinção implica uma outra, epistemológica, entre os dois. A análise de Caio Prado parte do entendimento do Brasil (macro) para o entendimento de seu cidadão (micro); Sérgio, inversamente, traça o perfil psicossocial da parte (indivíduo), e a partir dele depreende a condição do todo (nação), do Brasil. E isso é tudo, por enquanto.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

canzone del sole

Para Ana Júlia.


Um dos discos mais brilhantes dos Mutantes certamente é “Tudo foi feito pelo Sol” (1974), a começar pelo nome. O título do disco é tão polissêmico que oferece um sentido fácil, lógico, superficial, instintivo e agradável, como fazem a maioria das coisas realmente profundas. É um raciocínio plenamente racional, isto é, desculpável. Contudo, para além disso, há uma margem imensa para a fantasia, aberta e virgem, que não se oferece simples, mas sim fica disponível, a seu modo, para a curiosidade e para o espírito especulativo. Para o desejo de imaginar.
“Tudo foi feito pelo Sol” é claramente uma crença animista, uma exaltação ao perene e uma delicada submissão a uma ordenação máxima, divinamente mundana como o Sol. Para chegar a esse nível de abstração, comecemos pelo particular, pelo menor grão de areia, pelo concreto, pela unidade mínima que compõe o todo.
Em uma tentativa filosófica – e portanto humana – de refletir sobre o metafísico, a unidade primitiva é a vida humana. É ela que se encaixa, se explica e se concatena com a concepção geral, que buscaria, por sua vez, ser o arcabouço que dá coerência e objetivo à própria existência humana. Em outras palavras, é o homem – perguntando a si mesmo sobre sua vida, sua razão, seu lugar no mundo e sua existência coletiva – que constrói as mais diversas suposições cosmogônicas. “Tudo foi feito pelo Sol” é uma suposição cosmogônica.
A vida é, para cada um de nós, como uma queda livre em que o puxar o pára-quedas não é um imperativo. A segurança serena do avião ou do útero é abandonada de supetão, lançando o grão de areia humana em uma existência comprimida pelo tempo, em que a gravidade somente traz para baixo, nunca para cima ou para os lados. A queda é intensa e inevitável, pelo menos em um primeiro momento. Sempre há, claro, a opção do pára-quedas. Ele não muda a gravidade da queda, nem sequer altera o trajeto do indivíduo cadente, mas oferece – e isso pode ser crucial – segurança e estabilidade nesse mesmo trajeto. O movimento torna-se prolongado e controlado.
Há quem abandone o avião afobado, explore a gravidade em toda sua intensidade e faça da queda um arrebatamento extremo, um ilimitado estupro da vida, um gozo súbito.
Em termos cosmogônicos, essa opção é totalmente irrelevante. Não importa a intensidade, o estilo, a segurança ou a duração da queda. A gravidade é inexorável. Para todos os grãos de areia que desabam do céu. Nesse caso, a imagem que soa mais apropriada seria a de pingos d’água, e não de grãos de areia. Uma chuva de pequenas porções de vida, então. Células de existência humana arrastadas pela força de seu peso, sendo trazidas em uma grande tempestade até o solo, produzindo o suave ruído do choque, ricocheteando por instantes em gotículas esparsas e depois fazendo imensa e homogênea poça. Cada gota cadente está fadada a acumular-se em poça, pelo simples peso de sua existência. Toda a vida está fadada a extinguir-se, a agrupar-se com as demais vidas extintas e formar uma monótona uniforme poça de chuva. Um lago imenso de vidas extintas. Ao fim, todas as gotas são atraídas para a mesma poça.
É, no entanto, uma inferência apressada concluir que a gravidade é, na metáfora, a força vital e máxima, porque nenhum lago é estático. Nenhum lago é composto sempre pelas mesmas águas, uma vez que a chuva nada mais é que o lago em movimento, porque a chuva é o lago em outra etapa, porque a chuva se alimenta do lago e o lago se alimenta da chuva. Assim funciona a natureza.
Porque cada gotícula de água imiscuída na globalidade do lago recebe energia vinda do Sol. Cada molécula do lago, ao receber essa energia, faz-se mais ativa, intensificando seu movimento aleatório pelo líquido, excitando-se, agitando-se. O imenso corpo d’água não está morto. Conforme essas moléculas tornam-se mais ativas, elas transformam-se em vapor. Superam o limite de agitação do estado líquido e ganham uma forma menos palpável, menos concreta, menos sensível, menos tangível. A energia vinda do Sol faz com que o imenso lago das vidas extintas ganhe paulatinamente propriedades mais etéreas, e – como vapor, como vida extinta energizada, como morte ressuscitada – ascenderá evaporando ao céu. As moléculas excitadas de cada sopro de vapor irão, então, ocupar um espaço maior do que ocupavam no líquido, na poça, no lago; graças a essa dispersão, vapor é mais leve, muito mais leve que as gotas caídas da chuva e esparramadas no solo. E ele pode subir, fazendo troça da poderosa força de gravidade que todas as gotas arrasta para baixo. Subirá e subirá, como gigantesca nuvem de vapor ascendente, como uma infinidade de partículas excitadas, como gotas arrancadas da poça da morte pela energia despejada pelo Sol. E assim formar-se-ão os aglomerados de vapor d’água no céu. Eles são a forma latente de vida, e permanecerão nessa condição etérea de inexistência até que condensem em vida novamente, até que assumam de fato o peso suficiente da gota e recomecem a cair em virtude desse peso. Então assumirão a forma efêmera da vida humana coagida por essa gravidade inexorável, e terão a ingênua liberdade de dispor de sua queda a seu bel prazer. Mas sua existência está condenada a ser concreta. A ser finita. E ela será, ao fim e ao cabo, somente um movimento passageiro da monumental sonata orquestrada pelo Sol, fonte real de toda a perenidade. Nesse arranjo cosmogônico, as gotas são só gotas, e o vapor é só o vapor; a chuva é o lago e o lago é a chuva. E o Sol é a força vital, é a garantia de todas essas equivalências. Garante que a poça acumulada das vidas extintas não seja a morte irrevogável, mas que a poça, a gota e a nuvem sejam estágios sucedâneos em um ciclo. Garante que a gravidade não seja apenas o carrasco dos que vivem, mas também, e concomitantemente, o místico ascensor dos etéreos para uma nova queda.
“Tudo foi feito pelo Sol” não significa que todas as formas vivas emanaram – em passado perfeito – da energia solar. Não sugere a linearidade. Significa que todo o arranjo metafísico amplo, de que nossa queda é apenas parte, é e foi ditado pelo Sol, em uma reprodutibilidade perfeita. A ele devemos a ordem oferecida pela natureza, o sentido de perpétuo, a razão e a lógica de que tanto carecemos.
“Tudo foi feito pelo Sol” – além de ser uma sugestão cosmogônica e um grande álbum dos Mutantes – é um convite à imaginação.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

“hot pics”, Marx, TIC’s, bytes e o Maio de 2008

(Texto enviado pro NÃO!83, escrito nas noites do Maio de 2008)


Somente uma nota preliminar: o tempo que você está prestes a desperdiçar com esse texto será mais do que suficiente para baixar ilegalmente uma música do Bob Dylan., e eu tenho a humildade de recomendar a segunda opção. Para que você não perca nenhum minuto sequer da sua vida online, escolha sua música e minimize seu programa de pilhagem autoral. A sugestão é “the times they are a-changing”, porque é disso que eu vou falar (mal).

Como em nenhuma outra época de nossa história se disse tantas vezes “como em nenhuma outra época de nossa história” ou equivalentes. Essa é uma característica marcante da nossa pretensiosa sociedade. Atingimos um grau de fascinação sobre do que somos tecnicamente capazes que nos tornamos tecnicamente capazes de esquecer o inconveniente. Sem pudor. Para celebrar e enaltecer o novo, o inédito, o rápido, o global. Nas últimas décadas ganhou um jovem impulso a euforia com o progresso, com a ciência, com a tecnologia, com a civilização. E essa euforia tem razões, e não por coincidência as mesmas razões de apagaram o socialismo-barbárie da “nossa” história, da história da civilização; são razões complexamente simples: transístores, circuitos integrados, microprocessadores, fibra óptica, chips, computadores, satélites, telefonia móvel, Internet, Google. Aliás, um parênteses, eu escrevi “internet” com letra minúscula e o corrector automático do Word imediatamente ajustou para “Internet”, como quem diz “mais respeito, por favor”… Por via das dúvidas, “Google” coloquei já com maiúscula. Fecha parênteses. Em suma, quem venceu a Guerra Fria e anda dando as cartas na nova ordem mundial são as TIC’s, as novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, mais universalmente reconhecidas por um pressentimento generalizado de que estão Tentando Inventar Coisas. Um detalhe aqui faz toda a diferença: estão. Eles estão. Toda a civilização, o progresso e a técnica pertence de facto a umas poucas pessoas (na maioria, jurídicas), mas preferimos esquecer disso e falar na primeira pessoa do plural, como quem refere a um primo rico como “nossa família”. O grandiloquente discurso da “nossa história” não gosta de dissidências. Estamos todos penetrando no inédito, mesmo que alguns o façam a reboque.

Nesse gigantesco pau-de-arara histórico, abrimos mão de nossa capacidade de criar. Na verdade, a criatividade aparentemente tem uma de suas dimensões super-estimulada, a inesgotável inventividade tecno-científica. Mas mesmo assim, ela é fértil somente em nossos primos ricos, os que puxam o reboque. A nós, da caçamba, restou uma imaginação limitada. Cujas dimensões múltiplas nossos primos abonados Têm o Intento de Concluir, de arrasar. De todos os brinquedos da mente humana, escolhemos – olha a primeira do plural! – a tecnologia, e deixamos todos os demais empoeirarem. Então é ela que importa. Cabe a nós importarmos avalanches de produtos, programas, inovações, máquinas, dispositivos, apetrechos, bagulhos, trecos e coisas que farão nossa vida, pasmem, infinitamente melhor. Coisas de que, aliás, não precisamos, ou melhor, não precisávamos. Tornou-se senso comum dizer que nossa vida se tornou mais fácil e mais confortável com esses novos TICs nervosos. Mas a verdade não é essa, acreditem. A verdade é que nossa vida se tornou infinitamente mais difícil sem eles, o que é uma diferença brutal. Como nunca antes em nossa história fomos tão desatentos aos detalhes.

No começo do vigésimo século, uma alma elevada como a de Fernando Pessoa podia dar-se por plenamente satisfeita, segundo ele, com um Conan Doyle, um bom cigarro e uma “chávena” de café forte. No começo do século seguinte, uma criança comum já contabiliza seus anseios em código binário – em uma quantidade até a qual ela não sabe contar – e o que a entretém agora não a interessará amanhã. Sem querer cair no cliché, nunca na história de nossa sociedade houve Tanto Incentivo ao Consumo momentâneo, fugaz. É claro que existe um comodismo na plenitude modesta de Fernando Pessoa. Mas o que se perdeu semanticamente com a ocidentoxicação foi outro detalhe: a contrapartida positiva do comodismo. Comodismo para “nós” significa conformismo: uma submissão pacata ao destino, a deferência passiva ao que é imposto. Mas não parece ser isso que Pessoa nos inspira, com seu café, seu cigarro e seu livro. É, por outro lado, a acomodação da realização, da satisfação, da plenitude. É essa sageza espiritual que muitas culturas não-ocidentais souberam valorizar em oposição à ambição insaciável, insatisfeita, ou, agora em outro sentido, incómoda. Essa busca de uma realização sempre a um passo adiante, sempre exigindo um esforço a mais, sempre presa a uma fénix de anseios, sempre inquieta e sempre inatingível é louvada ao extremo entre nós, sob o rótulo de empreendedorismo.

“A tecnologia revela a relação activa do Homem com a natureza, assim como o processo de produção directa de toda a sua vida, e, assim, o processo de produção de suas relações sociais básicas, de sua própria mentalidade, e de suas imagens da sociedade também”. Essa apoteose prometéica do velho Marx explica razoavelmente bem porque nossos outros brinquedos estão mofando na prateleira, ou seja, porque acumulamos Tamanha Inaptidão para Criar. Porque precisamos admitir que esse tipo de tecnologia é uma inaptidão para criar, de um modo geral. Primeiramente, porque as pessoas que dizem que “nossas” tecnologias facilitam a vida não fazem a menor ideia de sequer como um telefone funciona, isso para nem cogitar os demais aparelhos tecnológicos que utilizam todos os dias. Alguém os criou (espero que tenha sido humano), cabe a nós apenas operar. E isso tem nome técnico: RISC, Reduction Instruction Set Computer, lê-se risco em inglês. A lógica é: as operações são mais rápidas quando simplificadas, e ainda mais rápidas quando baseadas na repetição de comandos, e não na memória (do computador). Em termos humanos, equivale à ignorância. O “risco” é mesmo de quê, companheiro?

Por essas e por outras, nossa sociedade pretensiosamente ignorante depende de uma assistência técnica 24h e de MP3 – muita paciência, muita paciência, muita paciência. Nosso programa pode subitamente executar uma operação ilegal e ter de ser fechado, com base em julgamento em primeira instância sem possibilidade de recurso a tribunal superior. Sempre penso, numa hora dessas, porque diabos todas as operações ilegais da Microsoft não nos permitem fechá-la de uma vez por todas… Ouvi dizer que, para esse tipo de exasperação, lançaram recentemente o MP4, e o MP5 já está no fim da esteira. Mas se há algo que por repetição nenhum processador foi capaz de perceber é que nenhum de nós quer enviar um relatório de erros para a Microsoft. Digam-me se me equivoquei quanto à primeira do plural.

Afirmo eu que a tecnologia frequentemente revela a relação activa do Homem com sua paciência e com seu auto-controle. Principalmente se você começar a gritar palavras chulas, der um soco no teclado ou atirar seu celular longe. Se você retrucar que Marx provavelmente não diria isso, obrigo-me a parafrasear o Analista: o que Marx diria tu não ia entender. Ou tu fala alemão?

De facto, cabe a nós, que não falamos alemão e estamos no reboque do progresso, a tarefa de tentar, tentar, ver para que direcção estamos indo, e se existe algum futuro em nosso futuro. E isso não está fácil de se fazer, sejamos honestos. Aquele “nós” da euforia, o “nós” do ineditismo iria dizer que é um absurdo dizer que nossa criatividade está moribunda, se “conseguimos” criar aparelhos modernos com uma velocidade sempre inédita, que as distâncias e o tempo encurtam e que de dois em dois anos podemos dobrar o número de transístores em um circuito integrado. O “nós” do reboque, que não fala alemão e não sabe como dobrar um transístor, perceberia que a criatividade que está se perdendo é uma mais profunda, aquela que adormece entre a razão e a imaginação, entre a realidade e a fantasia. Como em nenhuma outra época da nossa história fomos tão pouco abertos à criatividade cidadã, à criação de novos modos de vida, de novos arranjos políticos, de novos movimentos culturais, de novas ideologias, de novas filosofias ou de especulações metafísicas inovadoras. Essas ideias pipocam aqui e ali, mas são oprimidas. Sufocadas por ideologias antigas. Enquadradas por elas. Do fascismo à democracia, do futurismo ao realismo. Todas são antigas e são entendidas em seu sentido antigo: mesmo a polissémica e intrigante ideia de “liberdade” é utilizada hoje no sentido que a independência dos EUA criou duzentos anos atrás. Restrito, diga-se de passagem. Ocorreu uma emergência extraordinária de tecnologia e de métodos, como nunca antes, mas ela somente engrandeceu a capacidade de destruição, para cristãos e muçulmanos matarem-se mutuamente como sempre fizeram. Inventamos o forno de microondas para requentar uma alimentação mundial baseada sempre em trigo, arroz, batata e carne. Talvez a única criação tipicamente contemporânea em termos de modo de vida tenha sido o estresse, mas ele é antes a desastrada consequência da carência de novos modos de vida. Perguntamo-nos, assim, que formas de ser e de pensar estão acompanhando todo o ineditismo da “nossa” história, e se serão elas compatíveis com o grau de progresso de nossa civilização. Em outras palavras, marxianas, quais são a mentalidade e a imagem da sociedade que essas tecnologias estão produzindo? Terão Imaginação os Computadores?

Por isso talvez fiquemos com a sensação de actualmente não ter chegado a ponto algum, seja um bom ou ruim. Lá do fundo da boleia, temos a impressão de que perderam o mapa, ou nos enganaram sobre o tal mapa. 1984 já vai longe e o 1984 de Orwell não chegou nem perto de acontecer. Em 2001, o 2001 de Clarke também parecia ficção futurista, só um pouco demodê. Até o Expresso 2222, uma espécie de Magic Bus brasileiro, mal passou do ano 2000 e buch: deu directo no World Trade Center. Sejamos francos, chegamos em 2008 e não fazemos a menor ideia de para onde vamos, e, pior, não o discutimos com alguma seriedade. Há uma analogia excepcional de Marx que diz que a abelha é capaz de fazer favos como nenhum homem o é, e a aranha tece sua teia com uma habilidade superior à com que o faria qualquer ser humano: a diferença crucial, que faz do homem o mais evoluído dos seres, é sua capacidade inerente de construir mental e previamente o que ele pretende construir de facto. Estranhamente, parece que estamos construindo nossa história como abelhas ou aranhas.

As ficções científicas de um modo geral têm a peculiaridade de tratar do futuro, e a associação entre essas três coisas – ficção, ciência e futuro – é das mais eloquentes. Primeiro, usar a tecno-ciência para prever o futuro é sempre um exercício de pura ficção, isto é, a tecnologia por si não nos diz muita coisa sobre as pessoas, e, a menos que Asimov esteja certo, elas ainda serão o elemento decisivo. As ficções científicas futuristas sempre tendem a fortalecer o domínio do técnico sobre o humano pela facilidade relativa de fantasiar a respeito do primeiro. Além disso, a tecno-ciência foi feita parcialmente à semelhança de seus criadores. Não importa quanto ela se desenvolva objectivamente, ela é sempre insuficiente: o que é fascinante não o que existe, mas o que está para existir. Em sua realização, a tecnologia depende do futuro, porque ela nunca se realiza no presente. As ficções científicas são, pois, a sublimação desse anseio permanente: a tecnologia é espiritualmente empreendedora.

Por fim, é esse espírito que pode estar a nos fazer abelhas, aranhas. Talvez o ordenador, em espanhol, esteja fornecendo a lógica por trás, a ordem subjacente a nossos favos e nossas teias, cada vez mais eficientes e práticos. Será que o “cérebro eletrônico comanda”? E então será que ficção científica futurista consiste de facto em suprimir nossa criatividade múltipla? E, completando o delírio cibernético, será que, além do futuro, a realização da tecnologia empreendedora depende de uma diminuição de nós, irregulares e criativos, para um mecanismo de abelhas e aranhas bem orientadas?

Não, Asimov. Não, Huxley, acho que não. E estamos em uma época boa para dar substância a esse não!, o Maio de 2008. Agora que os soixant-huitards estão atingindo os soixant-huit ans, cabe lembrar sua máxima: “sejamos realistas, queremos o impossível”. Porque é essa resposta que podemos dar aos ineditistas, pois aos seus olhos tudo já está no horizonte do possível, do alcançável, do “nosso” futuro. O problema é que seus olhos estão um pouco condicionados. Nós, germanófobos da caçamba da história, queremos o impossível porque queremos o que está fora do seu campo de visão. Queremos inovar em outro sentido, e em múltiplos sentidos. Por isso, esses TICs não são suficientes, nem o número de bytes, nem a vida cómoda (!?), prática e confortável que elas podem dar para quem as puder comprar em seu ritmo frenético. Frente à babilónia de novas inovações inéditas, precisamos e exaltamos somente um tipo de tecnologia, as TSC-D, as únicas que oferecem caminhos abertos e criativos. Tô de Saco Cheio. Tô de Saco Cheio Disso.

Nota final: mudando como, Bob?

sete anos, quarenta e oito horas e setenta e seis segundos

(Uma história para ninguém ler)


Essa história dura 76 segundos e tem três personagens, eu, entre elas. É verdade que não posso começar a contá-la a partir do primeiro segundo, já que não faria nenhum sentido para você, que não me conhece ainda. Ela tem um prólogo de sete anos, os sete mais importantes anos da minha vida, mas vou resistir à tentação de descrevê-lo. O prólogo inicia quando encontrei Augusto pela primeira vez, numa conferência sobre modernismo brasileiro no MARGS. E ele termina no primeiro segundo da nossa história, quando Antônio saca sua pistola e aponta-a para o centro das sobrancelhas de Augusto.

Meu amor por Augusto foi daqueles que arrancam a razão de uma mulher, fazem-na burra, ingênua e feliz. Vivi sete anos entre o céu e a terra, pra depois desabar pro inferno em setenta e seis segundos.

Eu e o Augusto ouvíamos música até tarde, bebíamos com poesias e trepávamos chapados.

Durante sete anos, era como se existissem dois protagonistas no meu mundo, e uma multidão de figurantes.

Prometi não descrever o prólogo e não vou sucumbir à pieguice. No entanto, preciso me ater aos dois últimos dias, que foram cruciais. Cruciais porque Antônio, um colega de faculdade, resolveu conquistar um terceiro protagonismo nessa história e na minha vida. Quando eu estudava no IA, Antônio era daqueles caras fenomenais, com charme e com a preciosa habilidade, rara no gênero masculino, de saber dizer coisas boas de ouvir do mesmo modo que de saber ouvir coisas nem tão boas de escutar. Tinha uma cultura impressionante e, o que me fascinava ainda mais, um talento para a arte, um dom. Tive um caso de dois anos com ele. Moramos um tempo juntos na Riachuelo, perto do Instituto de Artes.

Já faz dezoito anos que acabei meu namoro com o Antônio. No começo foi difícil, mas me acostumei. Ele ficou arrasado, pobrezinho. Ficou umas boas semanas sem dar as caras na aula. Nós acabamos nosso namoro, isso é fato, e eu me mudei da Riachuelo, mas a brecha pela qual Antônio entra na história fui eu quem deixou aberta. Eu não conseguia cruzar indiferente por ele nos corredores do IA. Uma coisa me inflamava o peito, um nervosismo, uma atração. Não queria mais um namorado, nem um apê na Riachuelo, nem um companheiro fiel. Só queria o Antônio, de vez em quando. Nesses dezoito anos, a gente saiu junto umas vezes, só pra curtir. Tomávamos uma cerveja despretensiosa, ele me convidava pra um cinema, eu ia às exposições dele e dormíamos juntos, como antes. A verdade é que o Antônio nunca lidou bem com a separação e não entendia esses encontros avulsos como eu. Para ele, era como se eu estivesse abrindo uma porta de reconciliação do nosso namoro – dando uma chance, sabe? –, e ele, várias vezes, teimava em colocar o pé no vão pra não deixar a porta fechar. Daí eu não atendia o telefone, disfarçava outros compromissos, respondia monossílabos desinteressados, aquela coisa. E uma hora ele desistia. Só quando ele namorou uma tal de Maria Clara é que ele compreendia o teor das nossas noitadas ocasionais. Sem ligações, sem recados, sem apego.

Não nego que, lá no fundo, alguma falta eu sentia dele me procurar, me telefonar, me assediar. Toda mulher gosta disso, eu acho. Mas uma hora passava. Tocávamos vidas independentes, sem se desligar um do outro. As exposições dele foram ficando, nesses anos, mais concorridas e famosas. Eu ia raramente.

Quando eu comecei a sair com o Augusto, sete anos atrás, esqueci completamente do Antônio. Como disse, havia só dois protagonistas no meu mundo. Meu namoro com o Augusto me absorveu inteiramente, era dedicação exclusiva, amor obcecado. Antônio me ligou duas vezes, nessa época. Na primeira, para ver as instalações que ele estava expondo na Bienal e, na segunda, para tomar um café. Na primeira, eu agradeci, disse que não podia. Na segunda, disse para ele nunca mais me procurar, que nosso romance tinha acabado.

Eu vivia em êxtase com Augusto, compartilhando todas as pequenas felicidades da vida a dois. Eu fui morar com ele, num apartamento na Eça de Queirós, logo apelidado de “apê-rtado” você pode imaginar por quê. Ao mesmo tempo, eu comecei a trabalhar num novo ateliê que dividia com duas amigas no Bom Fim, bem mais espaçoso e iluminado. Nem a distância nem a falta de espaço me tiravam o humor. Eu ia, no ônibus, acalentando a idéia de encontrá-lo quando chegasse em casa. Todos os dias. Ele me esperava com uma música. Sempre aquela que eu queria ouvir.

Como disse, foram os anos mais importantes da minha vida.

Não lhe disse ainda porque decidi relatar essa história, mas o motivo é claro. É claro porque é óbvio. Culpa. Culpa por ter sido meu o deslize. O deslize que iniciou a avalanche. Não é que eu ache que alguma coisa vai mudar, que toda a neve voltará para o cume da montanha, mas o arrependimento é tão atroz, tão brutal, tão agonizante. Daí acabo vomitando essas palavras meio desordenadas. Ainda não consegui encontrar a tranqüilidade necessária para ordenar minhas lembranças, contá-las com aquela frieza de um narrador em terceira pessoa.

Ainda não cheguei sequer aos últimos dois dias do prólogo.

Meu deslize foi ter me iludido com o momento mal que passava com Augusto. Foi há umas semanas. Liguei para o Antônio. Ele ficou meio surpreso, mas soube disfarçar. O Augusto estava atolado de trabalho, chegava tarde e cansado em casa. Ele me disse que já ia passar, pra eu não me preocupar.

Contei pro Antônio do ateliê do Bom Fim, como se fosse uma novidade, e o convidei para conhecer. Marcamos para uma segunda-feira, quando eu sei que só eu trabalho lá. Ele estava bem. Garboso e elegante, como sempre fora. Não omitiu uma ironia sobre minha resposta ao convite último dele, mas sorri, como se fosse natural.

Quebramos trepando a tela em que eu vinha trabalhando. Um movimento brusco e desastrado. Mas prazeroso.

No ônibus de volta para casa, eu estava satisfeita. Pronta para conviver novamente em harmonia com Augusto, amando-o mais que nunca. Aquela tarde com Antônio fora necessária, no entanto, para isso. Pensando assim, não era uma traição. Mas foi, verdade seja dita, o início do meu deslize fatal. Abri, naquela tarde, a porta pela qual Antônio conquistaria o terceiro protagonismo da história.

Ele passou a me procurar obstinadamente nas semanas seguintes. Aparecia diversas vezes no ateliê, perguntando por mim. Obriguei minhas colegas a uma mentira cúmplice em cada uma das vezes. Ligava certas vezes lá pra casa, obrigando-me àquela atitude suspeita de trocar de recinto para sussurrar ao telefone. Me afligia a idéia de que Augusto pudesse descobrir, porque ele nunca me compreenderia. Ele só veria uma traição vulgar de uma mulher desapaixonada.

O cerco de Antônio, no entanto, tornava as coisas bem mais complicadas.

- Alô.

- Oi, Cacá, é Antônio. Tô precisando muito falar contigo.

- Eu já te falei pra não ligar aqui pra casa.

- Eu sei, eu sei. Mas Cacá, me escuta, por favor, não desliga. Me escuta só um pouquinho.

- Fala logo, enquanto tô sozinha.

- Tu tá sozinha? Posso ir aí?

- Tu tá louco, Antônio? O Augusto chega daqui a pouco. Não confunde as coisas.

- Tá bom, tá bom. Mas não desliga. Escuta, Cacá, tu não sabe como eu tenho sofrido nesses último tempos. Minha vida tá uma barra desde que tomei aquele pé-na-bunda da Lúcia. Lembra dela?

- Nem conheci.

- Pois é, pois é. Ela era uma guria demais. Morei quatro anos com ela. Mas ela foi embora uns meses atrás. Tu não faz idéia de como ela me fez falta. Senti um vazio no apê e no coração, sabe?

- Ah, Antônio, não começa. Eu não quero ouvir isso. Não quero mesmo. Isso não tem a ver comigo, entende?

- Claro que tem, claro que tem. Deixa eu falar, não desliga. Quando eu tava me exasperando, quando eu tava mal mesmo, tu me ligou. Foi uma luz, Cacá. Tu me encheu o dia de alegria. Foi uma benção.

- Antônio. Não pensa bobagem. Eu tô com o Augusto agora. Não dá. Coloca isso na cabeça.

- Uma vez só, eu tô te pedindo. Será que eu não posso te ver mais uma vez só? É um pedido de ajuda, é só isso que eu preciso. Pó, Cacá, pelo que a gente já viveu junto...

- O Augusto tá chegando. Tenho que desligar, tchau.

Não era verdade, lógico. Mas agüentar aquilo era um suplício pra mim. Tinha vezes que o Augusto até achava estranho minhas atitudes, e eu tinha certeza que ele suspeitava de algo. Isso me deixava ainda mais nervosa. Recebi dois e-mails do Antônio, nessas semanas, me pedindo ajuda, explicando tudo aquilo, falando como tinha sido bom me encontrar e querendo me ver só mais uma vez. Deletei. Não nego que eu me sensibilizava com aquilo, mas tinha para mim como certo que minha volta com o Antônio não poderia ir além daquela tarde no ateliê. Era minha vida toda com o Augusto em jogo. O segundo email foi mais dramático. Dizia que eu era o último sentido que ele podia ver na vida, e que ele precisava de mim mais que tudo. Deletei.

Na cama, no escuro e no silêncio, todo tipo de hipótese me assolava. Até fugir com o Antônio pensei. Mas o que eu pensava mesmo era o que fazer ou dizer para convencê-lo de que não era eu a solução para a depressão dele. A rispidez, a indiferença e os monossílabos não estavam funcionando.

Aquela situação estava me consumindo.

Até que, numa noite qualquer, eu, literalmente, inventei uma solução. Certamente a mais impulsiva e estúpida que podia inventar. Com isso, já demonstrei até aqui boa parte da culpa que assumo pelo que aconteceu.

Estava no telefone com Antônio, ele beirando as lágrimas. Eu estava sozinha em casa. Ele me perguntava incisivamente o que me impedia de encontrá-la na manhã seguinte, para um café no Bom Fim. Eu tinha dado algumas respostas que, confesso, não foram nada convincentes. Ele estava obstinado e mal me deixava responder direito, com a voz um pouco abalada. Então, inventei subitamente uma mentira, uma mentira descabida, uma mentira absurda. Foi o que me ocorreu na mente na hora.

- Antônio, não tem como eu te encontrar mais. Tô te falando. Se o Augusto descobrir, ele vai me espancar. Não tem jeito, não tem jeito. Ele é assim.

- Ele bate em ti?!

- Só quando eu dou motivo, ora. Por isso que estou te dizen...

Ele desligou.

Um frio me subiu pela espinha. Fiquei uma infinidade com o telefone na mão, ouvindo o barulho automático e periódico do outro lado da linha. Um medo inimaginável tomou conta de mim, estava em pânico. Comecei a chorar e andar desvairada pelo apartamento, pensando no quê passava pela cabeça transtornada do Antônio àquela hora. Quando consegui retomar algum controle sobre mim, liguei para Antônio, ainda chorando. Ninguém atendeu.

Quando o Augusto chegou, ele obviamente perguntou o que tinha acontecido. Não conseguira me recompor e estava visivelmente abalada. Mas não consegui contar nada. Menti de novo. Como iria explicar àquela flor-de-pessoa que havia transado com outro cara? Que aquela transa não era nada e que eu ainda o amava mais que tudo? Que eu precisava me livrar há semanas desse cara e não sabia se havia inventado uma mentira inteligente ou completamente idiota? Que eu havia dito pra um cara já meio instável que ele, Augusto, me batia de vez em quando? Ora, ora.

- Nada, Guto, nada. Tô de TPM, meu dia foi difícil. Amanhã passa.

Ele não tocou mais no assunto. Fez uma janta pra nós. Eu tentei fingir naturalidade. Mas com meus botões ficara conjeturando as reações do Antônio no outro lado da linha, logo que desligou o telefone. Agora era aquilo que me massacrava mentalmente. Um pensamento obsessivo. Cheguei, naquela noite, a formular pela primeira vez uma hipótese que hoje me parece o mais plausível possível: a de que Antônio, durante todos esses anos, me oferecera muito mais amor e devoção do que recebera em troca, que ele me amava de verdade e sofria constantemente com minhas idas e vindas. Isso me deixava ainda mais confusa.

Esqueci de dizer: esses eram os dois últimos dias do prólogo, os cruciais. Porque, como disse, se Antônio forçou sua entrada na história a partir daí, foi só por que lhe ofereci essa possibilidade.

Desnecessário dizer que não dormi nessa noite. Estava inquieta na cama, com os olhos alerta e a imaginação ribombando. Augusto percebeu meu desconforto e minha ansiedade. De madrugada, disse, com aquela voz doce pela qual me apaixonei: “Tenta te acalmar. Amanhã vamos ver um ginecologista. Isso não é normal.” E beijou minha testa. Tentei desesperadamente escolher as palavras para explicar para ele o que tanto me atormentava, compartilhar com ele minhas dúvidas. Quando achei que tinha juntado a coragem com as frases necessárias para contar tudo, chamei-lhe:

- Guto...

Ele se virou e me olhou, calmo, perguntando o que era. Então minha decisão corajosa correu para um lado enquanto as palavras escolhidas corriam para outro. Minha força de vontade sucumbiu à insegurança e respondi um covarde:

- Te amo.

Ele só sorriu e me beijou.

No outro dia, fui para o ateliê, mas não consegui fazer nada além de pensar no Antônio. Tentei ligar pra ele, mas ninguém atendeu. Alguns instantes depois, tocou o telefone: era o Augusto. Perguntou como eu estava e eu menti que estava melhor. Ele disse que ia preparar uma janta especial pra quando eu chegasse. Aquilo me deu um certo conforto. Peixe com alcaparras, que eu adoro.

Voltei pra casa angustiada, dividida entre a figura transtornada e instável de Antônio e a placidez e a segurança do peixe grelhado de Augusto. Aquela dúvida me remoía por dentro. Tudo o que eu queria naquela hora era exatamente o que eu havia evitado por tanto tempo: falar com Antônio. Eu precisava falar com o Antônio. Era o único meio de recobrar a serenidade da minha vida de música, poesia e peixe com alcaparras. Era o único meio de me recuperar os erros que cometera. Mas nossos erros do passado sempre cerceiam e constrangem nosso presente. Determinam-no, por vezes. Constantemente eles nos obrigam a não fazer o que pretendíamos, inclusive a errar no presente, pois nós mesmos nos alijamos da possibilidade de acertar. Estranho isso, né? E se acabamos por não conseguir acertar hoje, complicamos nosso amanhã. Porque nosso futuro é sempre dependente do que escolhemos agora. O desesperador é perceber, de repente, nossa vida descontrolada, fora do nosso próprio juízo e comandada por uma força externa e poderosa: o destino que escolhemos.

Quando abri a porta de casa, me deparei com uma cena horrível. Não contive um grito agudo de susto. Augusto estava caído no sofá, com a cara marcada dos murros do agressor. Antônio bufava como um touro, logo a sua frente, com os punhos cerrados com vigor. Sua expressão de raiva se relaxou quando me viu entrar. Disse, logo que entrei, entre arfadas exageradas:

- Desculpa, Cacá. Eu queria ir embora antes de você chegar.

A história começa aqui, enfim. Antônio tira uma pistola escura da cintura e aponta-a para Augusto, que jazia confuso e atordoado no sofá. Desnecessário dizer, entrei em pânico nessa hora. Entrei num pânico histérico, chorando, gritando e soluçando, sem conseguir dizer coisa alguma. Tão desesperada para falar tantas coisas ao mesmo tempo, precisando explicar tudo tão rápido, com tantas coisas atropelando minha cabeça que não consegui articular nenhuma palavra inteligível nesse momento decisivo.

- Te acalma Cacá. Vim falar foi com esse sujeito aqui. Não te mete.

Antônio estava tranqüilo, com a pistola firme na mão. Não desviava o olhar de Augusto para falar comigo, que estava ajoelhada na entrada, desfeita. Augusto foi lentamente se recompondo, pondo-se de pé. Tinha uma mancha de sangue no sofá.

- Cacá, tu conhece esse maluco? Me explica o que ele tá fazendo aqui, porra!

O máximo que consegui foi acenar afirmativamente com a cabeça, entre gritos e lágrimas.

Antônio deu um chute em Augusto e mandou-o parar de falar. Soltei um berro assustado quando seu corpo recaiu jogado numa poltrona, emitindo um som abafado. Antônio toma a palavra, com meu choro de pano de fundo. Cada uma daquelas palavras piorava meu sofrimento. Sentia-me incapaz de interferir na situação, no ânimo vingativo de Antônio, mesmo sabendo que ele precisava de minhas palavras para frear aquela loucura. E essa impotência é o que mais me deixa histérica, desesperada por minha própria passividade, pelo meu sentimentalismo tão total que me deixa inútil. Ali, chorando ajoelhada, agonizando.

- A vida é uma coisa estranha, né, cara? É o que a gente tem de mais valioso, e, quando vai ver, já foi. E o que somos sem ela? Nada. Entulho. Lembrança. Mas te digo uma coisa. Um podre como tu já é nada mesmo com vida. Tu conseguiu ser entulho antes de morrer, seu merda. Por isso não vou ter remorso, quando teu cérebro voar nesse sofá. Vou só legitimar o nada que tu é. Tirar a vida que tu não fez por merecer. E nem lembrança tu vai ser, porque ninguém lembra de lixo. Lixo passa com o vento.

Ansiada por fazer alguma coisa, me aproximei da janela, trôpega. Consegui berrar, com dificuldade, alguma coisa que fizesse parar Antônio, antes que aquele dedo sutilmente deslizasse no gatilho.

- Se tu... Se tu atirar... Eu pulo. Eu pulo!

O “apê-rtado” fica no décimo - segundo andar. Não sei o que me passa pela cabeça numa hora dessas. Só desespero.

Antônio instantaneamente abandona sua posição de atirador, com o braço esquerdo estendido segurando a pistola, e vai ao meu encontro, me segurando. Ele me abraça forte, falando no meu ouvido. Sinto encostar o cano gelado na minha nuca.

- Calma Cacá, calma. Tá tudo bem. Tu só tá nervosa agora, vai passar. Relaxa. Não faz essa loucura, por favor. Esse cara não vale nada disso. Não vale, não vale. Te solta desse suplício, meu amor.

Estava encolhida junto à janela, como uma criança assustada. Chorona, medrosa e incapaz. A isso me resumia. Só consegui menear a cabeça lateralmente, como que dizendo não.

- Vou te mostrar outra vida, Cacá. Tu vai ver. Tu não merece esse absurdo aqui. Tu é uma mulher maravilhosa, Carolina. Tu merece quem te ame de verdade. Tu merece só beijos, não porradas. Tu tá escutando o que tu dizendo, meu bem? Sai ali pro corredor. Tu não precisa ver nada disso. Eu entendo que deve ser difícil. Eu já te encontro ali. Num instantinho, tá bem?

Eu estava recuperando a respiração normal, com Antônio me enxugando as lágrimas. Sentia, naquele abraço e naquelas palavras, que atrás de toda aquela violência havia carinho, que se ele tinha uma arma engatilhada nas mãos era por me querer bem. E só por isso. Aquilo me enternecia um pouco. Aliviava a tensão daquela mão estendida com a pistola mirando Augusto. Abracei Antônio.

Com os olhos fechados, não percebi o que acontecia naquela sala. Só ouvi o estampido de um tiro. Gritei. O corpo que me abraçava amoleceu, flácido, frouxo, morto. Augusto empunhava um revólver com a mão direita, ostentando o semblante do assassino. Eu nunca soubera da existência daquele revólver. Antônio bufou sangue e caiu dos meus braços. Augusto tinha um olhar que jamais vira antes naquele rosto. Outros tiros se seguiram, fazendo o cadáver de Antônio se revolver no chão. Foram seis. Uma brutalidade. Augusto arfava, todo avermelhado, as têmporas salientes e a mandíbula projetada para frente, como um animal. Tinha uma expressão de violência e de força bruta que me apavorou, me fez estranhá-lo por completo. Sentia cheiro de alcaparras.

Aqueles cinco últimos tiros foram só pelo prazer de mutilar, de estraçalhar, de destruir. Só conseguia sentir medo e asco de Augusto, com aquele revólver na mão e a satisfação do assassinato na face. Era monstruoso. Era repugnante.

Me desconcertava a surpresa de que convivera os sete anos mais importantes da minha vida ao lado daquela raiva, daquele ímpeto bestial, daquela sanguinolência. Que aquele que escolhia minha música escondia de mim um revólver carregado.

Corri para longe daquele apartamento, entre lágrimas e soluços. Ouvia atrás de mim que Augusto me chamava. Corria mais rápido para não escutar nada.

Nunca mais. Essa era a única certeza que eu tinha em mente. Nunca mais conseguiria compartilhar a cama com aquele senhor, aquele homicida violento. Nunca mais beijaria aqueles lábios sem pensar no arfar e no pequeno sorriso que sucederam o disparo. Nunca mais olharia fundo naqueles olhos sem pensar no semblante assustador que atirou cinco vezes em um corpo morto. Nunca mais abriria a porta do apê da Eça de Queirós sem me lembrar da surpresa terrível daquele dia, sem que aquela cena me viesse à mente. Nunca mais me esqueceria da tranqüilidade de Antônio com a pistola e do conforto à janela. E nunca mais, nunca mais, me sairia da minha lembrança o trocar de olhares com Augusto, quando, confusa, levantei os olhos para encará-lo enquanto o corpo de Antônio caía desfalecido no chão.

Tudo isso me atormenta até hoje. A culpa. Os setenta e seis segundos se repetem na minha cabeça toda vez que fecho os olhos. Aqueles traumáticos segundos em que não consegui fazer nada, congelada pelo meu pânico. Segundos em que fui fraca, fui infantil, fui estúpida. Quando todo o destino dependia da minha racionalidade, do meu sangue frio, fraquejei. Pela minha sucessão de erros, o arrependimento cru.

Caso não tenha ficado claro até aqui, lhe explico que essa é a história da minha vida. Nunca mais consegui separar mentalmente o homem que eu amei do monstro. Desde aquele dia, vivi sozinha.

Das três personagens dessa história, duas eu garanto que morreram naqueles setenta e seis segundos. Da outra eu não posso falar, porque nunca mais o vi.



Consumindo.

(delírio sobre discussões insensatas de uma aula de sociologia)



O primeiro motivo pelo qual a sociedade contemporânea pode ser chamada de consumista é que, quando falamos de consumo, podemos nos referir a todos os aspectos da própria vida. O consumo não é uma variável económica, a menos que reduzamos a cultura à economia ou a economia à cultura. E o consumo não é uma variável cultural, se isso existir, pelo mesmo motivo. O facto de consumirmos batatas congeladas, ideologias, jeans, teatro, alfaces ecológicas, lasanhas congeladas, os beatles, ensino privado, a decoração de um bar, ervilhas congeladas, atum enlatado, segurança urbana, a Capela Sistina, a limpeza de um animal de estimação ou uma partida de futebol é, em si, nossa forma de estar no mundo. Curiosamente ou não, eu não tenho um estilo de vida, mas eu o defino com base nas minhas escolhas, isto é, eu o consumo. Como escreveu Boaventura de Souza Santos, “o conceito de consumidor substitui o de cidadão, e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência”. A alocação de meus recursos define a visão do outro sobre mim, assim como minha impressão do espelho e com o travesseiro.

A primeira pergunta é: como essa espécie de consumismo totalizante nos contagiou? A resposta não é simples, mas pode ser simplificada. Iniciamos a chamar-nos homo habilis quando a destreza foi nossa característica determinante; passamos a chamar-nos homo erectus quando nossa postura nos definia; evoluímos a homo sapiens quando a sabedoria era nossa especificidade; por fim, chamamo-nos homo economicus quando o consumo é nosso traço distintivo último.

O homo sapiens é, por definição, um ser racional. O homo economicus é, por definição, um ser racional e livre. Agindo em um mercado perfeito de concorrência perfeita, o estágio último da evolução humana usufrui de toda a liberdade possível, ou seja, toda a liberdade que sua racionalidade permite. Dotado de recursos limitados, ele se dirige a esse mercado e maximiza seu bem-estar. Imaginem o gozo que isso significa. Assediado de todos os lados por sedutoras ofertas de múltiplos ofertantes, nosso evoluído homem desfila por esse mercado com total autonomia para decidir onde gastar seu dinheiro, se pretender gastá-lo, quando gastá-lo e com o quê gastá-lo. Constrangido, contudo, pelo seu calculismo racionalista, esse ser supremo está fadado a sempre fazer as opções certas, escolhendo sempre o preço mais interessante, assim como as quantidades respectivas de batatas congeladas e de beatles que lhe oferecem mais bem-estar.

O Homo Economicus só não é a redenção final da espécie humana porque ele nunca existiu. Ele foi imaginado pela sapiência de alguns homo sapiens, para os quais foi interessante transformar os outros homo, nem tão sapiens, em entidades psicologicamente dependentes, economicamente activas e filosoficamente apáticas. Daí nasceu o consumidor moderno. Foi prometido ao homo sapiens, na altura, que ele poderia desfrutar não só de sua racionalidade, já demodé, mas também de uma liberdade infinita de escolha e de um bem-estar máximo. Tudo isso em um mesmo pacote.

Com esse bom argumento em mãos, já era possível considerar todo o mundo exterior como uma realidade consumível, ou, em outras palavras, disponível para esses novos agentes humanos fazerem suas escolhas. Visto pelo contrário, esses mesmos homens não tinham acesso natural a mais nada e nem a tudo, a não ser que escolhessem algo desse tudo e “desescolhessem” algo desse nada, isto é, a não ser que consumissem. O princípio fulcral dessa dinâmica chama-se “custo de oportunidade” pelos entendidos. Ele significa avaliar as escolhas feitas com base nas oportunidades renunciadas. Com isso, tudo passou a implicar um custo: eu próprio ficar parado é consumir, passar uma tarde dormindo é consumir e passar três dias fazendo festa é consumir. O preço desse “lazer” é o dinheiro que eu poderia ganhar caso estivesse trabalhando remuneradamente durante esse tempo. Mais o preço da bebida, no último caso.

Até aqui, espero que tenha ficado claro que a lenda do homo economicus conferiu universalidade e totalidade ao consumo. Para além disso, o consumo ganhou um retorno simbólico, quando ele passou a definir esferas tão identitárias do consumidor, pois, como diz o slogan do Unificado, “você é o resultado de suas escolhas”. Consumimos porque não sobrevivemos sem o fazer. A maneira particular como o fazemos é o diz a nós mesmos quem somos.

O segundo motivo pelo qual podemos chamar a sociedade contemporânea de consumista é que o elemento cultural em geral prevalece ao imperativo económico, isto é, o critério subjectivo de identidade vai além do critério objectivo da necessidade. Isso faz com que a lógica da extravagância, antes restrita à aristocracia, ganhe uma feição de massas, ao custo de um endividamento de massas, mas também de uma produção em massa. Ultrapassando a funcionalidade, os produtos consumidos são empregues em relações sociais de pertença e exclusão. Além do valor de uso, as mercadorias trazem a cargas psicossocial dos valores e das ideias que lhe subjazem. Uma fracção pequena do preço de um ténis de muitas molas serve para cobrir o mecanismo globalizado de exploração de mão-de-obra infantil nas Filipinas; o resto está remunerando o estilo de pisar, o status de uma marca e o Ronaldinho, o Cristiano Ronaldo e o Michael Jordan. Pendurar correntes de prata brilhante no pescoço de alguma forma materializa a pretensão masculina de que as mulheres comportar-se-ão com a extroversão erótica dos videoclipes dos rappers comerciais estadunidenses.

Contudo, isso tem facetas mais complicadas. Uma vez que não foi deixada ao homo sapiens nenhuma esfera de existência desligada do consumo, ele busca na realização material desse consumo a justificativa imediata da sua existência. Cada vez que consome, o indivíduo vê a sua preferência, a sua escolha, a sua personalidade a se manifestar, uma vez que há múltiplos ofertantes lhe assediando e sua opinião é decisiva. Assim, o consumo compulsivo emerge como uma prática de afirmação individual totalmente irracional. Curiosamente, a racionalidade que o homo sapiens detinha lhe foi subitamente solapada pelo estímulo incessante irrazoável de consumir, pela dimensão que essa prática assume e pela natureza impulsiva do desejo. “O desejo do consumo não deseja a satisfação. O desejo deseja o desejo”, segundo Zygmunt Bauman, um dos poloneses ilustres desse século XX.

Assim, a figura do ex-homo sapiens como agente económico já mudou um pouco. Dotado de restrição orçamentária, ele se dirige a um mercado perfeito e é assediado por múltiplos ofertantes em concorrência perfeita: estimulado por todos os lados, por cores, sons, botões luminosos, controles remotos e imagens sedutoras, nosso consumidor mal sabe para que lado correr. Em seu ímpeto de saciar seu desejo de potência (como afirmação de sua capacidade de consumir) e de reconhecimento pessoal (como ideias que signifiquem sua individualidade), ele acata aos apelos de múltiplos ofertantes, saindo do mercado metafórico com sérias dívidas. A sublimação freudiana desse cenário é um shopping center contemporâneo.

O shopping é o lugar por excelência onde não se vai atender necessidades, mas sim estar-se disponível para apelos de consumo impulsivo. Já que o tempo nesse caso favorece o ofertante – e não o consumidor calculista –, são adoptadas estratégias de confinamento, como a baixa exposição ao ambiente externo, escassez de saídas e a carência de relógios visíveis. Quando há relógios, eles não favorecem a leitura, como no caso do Iguatemi. Além de compulsivo, esse confinamento tem principalmente um lado voluntário-induzido, ou seja, transmitindo a sensação de que não há um lugar mais agradável que aquele para se estar, em seu tempo de lazer. Seguranças parrudos, ar-condicionado, mobilidade automática, estacionamento, bancos para sentar, bancos para retirar dinheiro, decoração, playground para as crianças não encherem o saco e até um cenário invernal de natal no verão. Duas tácticas complementares de confinamento para ajudar o impulso a se manifestar. Com isso, a opção pelo ócio ganha tanto a feição de consumo passivo, ecónomico, como de consumo activo, cultural.

Paralelo a isso, há a esfera da propaganda. Tal qual o shopping busca subtilmente, ou não, convencer o homo sapiens a permanecer em seu interior, a propaganda busca subtilmente, ou não, convencer o homo sapiens a comprar o seu produto (shopping). Realmente não sei se o que mais impressiona é o despudor com que fazem isso ou o sucesso que obtém em sua tarefa. A abordagem é tão explícita que os anunciantes tratam os reles mortais no imperativo – arbitrariamente, porque não. Dou uns exemplos conhecidos: “beba Coca-Cola”, “abuse e use C&A”, “compre batom”, “faz um 21”, “conte comigo”, “just do it”, “experimenta”, “vem para Caixa você também”, “keep walking” e o intrigante “think different”. Depois que Goebbels conseguiu o que conseguiu, não tem por que não acreditar que a repetição incessante de uma ordem vai penetrar as mentes. Se o shopping usa a carência de saídas como mecanismo directo de confinamento e as comodidades com ar-condicionado como táctica indirecta, a propaganda usa o imperativo como abordagem mais agressiva, enquanto junta a adulação do consumidor com a idealização de sua vida como expediente mais subtil. Nesse caso, os múltiplos ofertantes sussurram no ouvido do homo sapiens: “Vivo é você em primeiro lugar”, “feito para você” (Itaú), “sua vida ainda melhor” (Credicard City), “o tempo todo com você” (Banco do Brasil), “Viver sem fronteiras” (TIM), “Tem coisas que só a Philco faz por você” ou “porque você vale muito” (L’Oréal).

Então dê alguma atenção a isso: nosso agente econômico, irracionalmente impulsivo, tem agora uma outra situação para fazer as escolhas que substanciam sua identidade. Primeiro, ele é compelido e seduzido a ficar indefinidamente em um espaço onde sua irracionalidade é constantemente estimulada; segundo, ele não só recebe insidiosas ofertas (de produtos, mas principalmente de materializações de sua vida ideal) como também recebe ordens expressas para comprar, no imperativo. E ele acaba comprando.

Agora basta enunciar o que já está evidente: não há propriamente liberdade nas decisões de um consumidor nessas condições. Os múltiplos ofertantes em concorrência perfeita, em seu afã de trazer para si os consumidores impulsivos, organizaram um grau de histeria consumista que a promessa de liberdade infinita de escolhas, introjectada na lenda do homo economicus, é pateticamente irreal. Real, talvez, como um argumento ideológico. Do sentido amplo de liberdade (económica), restou somente a liberdade de escolher a marca que mais nos identifica, a casa de veraneio que mais combina com nosso estilo de vida. É excessiva cegueira não perceber a mudança. Só não percebe a farsa da promessa de liberdade infinita o consumidor que ainda persiste na busca do bem-estar máximo, pois, nas palavras de Rosa Luxemburgo, “aquele que não se movimenta não sente as correntes que o aprisionam”.

Sim, porque é evidente que a suposição do bem-estar máximo é a última a desabar, como não poderia deixar de ser. É simples: um consumidor, entendido no sentido amplo, não pode maximizar sua felicidade (seu bem-estar, sua satisfação, sua “utilidade”) se for desprovido de sua racionalidade e de sua liberdade. Ele consome obstinada e obedientemente, acreditando que o que ele ainda não tem poderá o fazer mais feliz, que há logo ali um computador mais potente, um carro mais confortável, um celular com mais opções, uma calça jeans da moda – e em cada uma dessas coisas ele poderá escolher qual o modelo ou a marca que mais lhe agrada. Constantemente é atribuída a Confúcio – não faço ideia quem seja o autor, não importa – uma máxima que diz: “o excesso e a carência são ambos um defeito”. É perfeitamente concordável. Mas para mim parece que o excesso e a carência são a mesma condição. Ter a sensação de ter alguma coisa – um objecto, uma prática, uma emoção, uma pessoa – em excesso, significa que alguma outra coisa está faltando, que existe uma carência de outra natureza. Quando percebemos que há uma proporção exagerada de algo que está a nosso alcance, é porque essa abundância não é capaz de substituir uma outra necessidade essencial, para a qual estamos pobres. É isso que acontece com o ex-homo sapiens como consumidor: a fartura material que lhe é empurrada goela a dentro no mercado hipotético não maximiza seu bem-estar porque há uma carência de um sentido mais profundo nessa obsessão. Ainda que seja compelido a agir por impulso quando consumidor, o ser humano ainda é um agente intelectual, porque sua racionalidade jamais poderia ser subtraída sumaria e totalmente. Assim, quanto mais satisfação material ele obtém dos produtos que adquire, mais esse conforto material perde valor em relação à esfera imaterial, que se manifesta como a contrapartida de carência da sua condição de abundância. Um honesto economista do século XIX enunciou o princípio geral, que ficou conhecido como “lei dos retornos decrescentes”. Segundo essa “lei”, os retornos que eu obtenho não são constantes, mas progressivamente diminuem em proporção, conforme a quantidade aumenta. De forma mais concreta: sapatos realmente podem trazer muita felicidade a uma pessoa que não possua nenhum; dar a essa pessoa um segundo par de sapatos irá aumentar seu bem-estar, mas não tanto quanto o primeiro; o décimo par de sapatos afectará em pouco seu contentamento.

Assim, o que se convencionou chamar de depressão é somente o estado de espírito resultante de um grande desequilíbrio entre fartura e carência e da incomunicabilidade entre diferentes dimensões do homo sapiens. Um dia desses vi uma manchete de jornal que dizia: "Japonês farto de tudo esfaqueia sete pessoas". É evidente que ele não estava literalmente "farto de tudo", senão não teria feito essa barbaridade.

O resultado desse rodeio todo é que a proposta do homo sapiens tornar-se um homo economicus, dotado de liberdade e bem-estar máximo, foi um meio dos “múltiplos ofertantes” tornarem os “múltiplos consumidores racionais” um contingente mais manejável. Além da promessa de liberdade e bem-estar serem falsos, nesse negócio os homo sapiens acabaram perdendo sua própria racionalidade, quando imersos em sua condição de consumidores.

Mas, vejam com um pouco de calma, isso não é estático. Como disse antes, o ser humano, sapiens, pode agir por instinto ou impulso, mas não pode deixar de ser uma entidade pensante. E ele só está em condição desfavorável na sociedade consumista porque aceitou a proposta feita pelo ofertante, que por sua vez zela por seus próprios interesses. Contudo, como entidade pensante, o mesmo consumidor tem a capacidade de ele próprio sugerir um novo acordo, em que ele próprio seja o zelador de sua racionalidade e de sua liberdade. Ele faz isso impondo-se como um consumidor livre e consciente, isto é, disposto, como ponto de partida, a julgar as ideias que está consumindo. Nesse novo acordo, os ofertantes passam a estar obrigados a vender ideias que satisfaçam a consciência dos consumidores, e isso pressupõe a existência de sua racionalidade (não só económica, mas total). Assim o homo sapiens pode afirmar sua sapiência não contra o consumo (o que é ingenuidade), mas através do consumo.

Não estou dizendo que essa forma de comportamento económico é o novo caminho para o “bem-estar máximo”, porque ninguém cai na mesma lábia duas vezes, ainda que a eleição de Collor para o Senado me coloque algumas dúvidas. O consumo crítico, o consumo de mundividências, o consumo consciente é uma alternativa possível, uma sugestão. É uma ideia que está sendo colocada no mercado das ideias, e que, como mercadoria, já pressupõe que consumidores pensantes frequentem esse mercado. Pasmem: o bem-estar máximo não existe.

Prazeres Mundanos

(conto especulativo sobre o vizinho da Thabita)


Ele não era daqueles jovens novatos que só conseguem pensar com uma cabeça de cada vez. Já havia atingido aquele maduro equilíbrio hormonal a que chamam de meia idade. Sabia ver, ainda que ela insistisse com sinais contrários, que não chegara ainda o momento de dar o bote. Ela certamente se maravilhara com a erudição despretensiosa de sua conversa, postando-se quase como uma disposta aluna, cuja admiração já cria um ilusório ensejo para uma noite de sexo, ao qual sucumbiria imediatamente o novato. Pelo contrário, Antenor Cohen administrava a situação, contendo o instinto sexual mais voraz, mantendo a postura loquaz que fascinava seu interlocutor; percebia nos olhos da menina que era uma armadilha. Tentadora armadilha, sem dúvida. Se mostrasse suas garras naquela noite – não dispondo de suas tradicionais estratagemas: seu vinho predileto, meia-luz e Piaf –, a pressa estragaria a oportunidade que o destino lhe colocara na frente. Antenor sabia que Ana não daria na primeira noite, ainda que tivesse cativando-a com aqueles papos de tropicalismo. Certamente ninguém sabia o que faziam Torquato e Capinam antes do movimento, de modo que ele conseguia romancear seus conhecimentos naquela mesa de bar e tornar-se mais sedutor que um encarte ou um livro de capa dura.

Ana sentava com os dois pés apoiados no ferro que sustenta a mesa de latão, deixando os joelhos mais levantados e apoiando um cotovelo em cada um. A cabeça ficava, então, suportada pelas duas palmas das mãos, com o olhar para cima, numa pose infantil. Antenor tinha certeza que a iniciativa afobada seria fatal: tinha o faro do predador, sabendo que a caça lhe escapa se o atraque é imperfeito. Sua intuição distinguia claramente dois tipos de mulher: as que querem sexo e as que sabem disfarçar que querem sexo. Ana era do segundo tipo, o que significava que sua noite de sexo seria fatalmente adiada. Seu equilíbrio hormonal lhe garantia a paciência de alguns dias. Ana tinha os cabelos curtos, lisos e penteados, que balançavam com energia. Seus seios, ocultos por uma fina blusa branca, sabiam dar sinais de sua sensualidade, dando um volume e uma forma magníficos ao corpo da garota. Eram duas saliências perfeitas, que ganhavam um destaque especial graças à pose em que estava. A blusa permitia que, com alguma atenção, se vislumbrasse o contorno do sutiã. Sua boca dava constantes sinais de voluptuosa provocação, com uma língua que teimava em não se aquietar em seu lugar. Vez que outra, quando a Antenor falava por um longo tempo, ela mordiscava os lábios. Lasciva. Antenor sabia como seria fatal se se desconcentrasse de seu discurso naqueles momentos, escancarando sua fascinação embasbacada pelo corpo vibrante da jovem, como um garanhão atarantado pela presença da fêmea. Era exatamente o momento em que mostrava – exatamente não demonstrando – seu maduro autocontrole. Isso não o impedia de, por momentos, repousar o olhar naquele perfeito par de seios, contemplando-os.

Ana pôs-se a falar de sua devoção ao “Tropicália” de Caetano, tomando a palavra por um longo tempo e falando com uma entrega emocional que atiçava o ouvinte. Sexualmente falando, lógico. Era uma fala bem articulada, que misturava percepções íntimas, clichês e análises bem interessantes do disco. A meia de Ana era comprida, xadrez. Suas coxas eram, inegavelmente, um objeto de atenção.

A perícia que Antenor havia desenvolvido em todos esses anos de lide feminina constituía-se de saber dialogar com ela e com si mesmo independentemente. Com ela, dialogava, por exemplo, sobre tropicalismo, pintura ou cinema. Consigo mesmo, Antenor dialogava – com a razão – sobre os avanços e recuos táticos da dança do acasalamento da espécie humana. Uma abordagem prática, evidente. Enquanto fala com naturalidade sobre o que a presa quiser ouvir, o predador, em seu íntimo, articula sua abordagem, interpreta os indícios da fêmea, engendra as oportunidades do sexo: essas conclusões determinam, por conseqüência, o teor do diálogo com ela. Isso significa pensar com as duas cabeças simultaneamente, uma técnica preciosa.

Havia, aliás, outros membros na mesa – o que complicava a aproximação de Antenor – delirando sobre conspirações absurdas e indefiníveis. Mas o assunto de Antenor capturara Ana para uma conversa à parte, o que já se refletia na posição das cadeiras. Antenor estava bem ao canto da mesa, e Ana, durante o tempo em que permaneceram ali, executou um discreto e sutil giro sobre o próprio eixo de seu assento, colocando-se cada vez mais voltada para o tropicalismo e menos para a teoria da conspiração.

Algumas horas se passaram até que todos fossem embora. Antenor não deu sinais de se mover, mas, como esperava, seu objeto de desejo tomou a iniciativa de sair. Contudo, ele conseguiu um meio de encontrá-la no dia seguinte, graças a um disco que prometera lhe emprestar. Ele tecera infinitos elogios à obra durante a noite, sabendo que era aquele o tipo de sutileza que colocaria Ana de quatro em sua cama: “Transa”, do Caetano. Ele tinha consciência de todas as intenções e ambigüidades que se escondiam no cedê. E sabia que Ana compartilhava dessa consciência. Mas sabia também que era um disco genial, o que mais uma vez comprovava sua capacidade de pensar com as duas cabeças.

No dia seguinte, uma quinta-feira, Ana surgiu com uma beleza indiferente, como se nem sequer suspeitasse que estava deslumbrante. Usava uma saia jeans que reforçava o contorno das pernas. Provocante e singela. Suas coxas eram, inegavelmente, um objeto de atenção. Mal Antenor abriu a porta, Ana abriu um sorriso. E era um sorriso lindo, que contraía a bochecha e espichava os olhos, mas sem mostrar os dentes. Esses mesmos que, noite passada, teimaram em morder os lábios com uma delicadeza sensual. Ana entrou falando bastante.

Antenor, quando chegara levemente bêbado em casa na quarta-feira, só amaldiçoava as covardias da vida social. A ele nada parecia mais artificial que o fato de ele e Ana não estarem fodendo àquela hora, agarrados, suando e mordendo-se mutuamente. Refletia sobre as convenções da conquista amorosa, dos textos e pretextos de que duas pessoas precisam para dar vazão ao seu instinto, da liturgia estabelecida para o sexo. Bebeu mais. Revoltava-se contra o puritanismo falso, contra a condenação hipócrita, contra o recalque social: ocorriam-lhe à mente todas as meninas pelas quais havia feito absurdos pelo sexo durante a vida, todos os momentos patéticos em que os olhares freavam o impulso, a censura ridícula com que uma sociedade oprimia a libido. Todos os clichês do flerte – aquelas flores, jantares, poemas, cartas, conversas dissimuladas – lhe horrorizavam em sua artificialidade, em sua superficialidade de ritual programado, e contrastavam com a pureza da sedução natural dos corpos se enlaçando, com a liberdade do desejo autêntico, com o sussurro ao ouvido. Bateu uma punheta inconformada. E bebeu mais e mais. Pensava naquelas estúpidas meninas acalentando sonhos pudicos de encontros perfeitos, restaurantes, músicas, clima romântico, olhares, promessas mão na mão, cinema e pipocas. Recalque! Para elas o sexo é pudente, a penetração é uma intimidade vergonhosa, o desejo carnal é pecaminoso. Prendem-se num amor que é só aparência, porque foram adestradas a ser assim. Vendo os seios de Ana na noite anterior balançarem suavemente, Antenor sentia instigados seus mais viscerais estímulos, um calor lhe percorria a espinha e vivificava seus sentidos, aguçava sua percepção e lhe implorava por ação. Aquelas coxas lhe faziam sentir viril, homem. Celibato é suicídio, concluiu, já desfeito no sofá.

Abrira propositadamente a garrafa de seu vinho preferido nessa noite de masturbação alcoólica, de modo que ela ficara estrategicamente posicionada na mesa de centro, já quase pela metade, para evitar quaisquer constrangimentos. Ana não fez cerimônia e aceitou o vinho, enquanto olhava uns pôsteres na parede. Antenor já havia recuperado todo o equilíbrio emocional de que necessitava para arrebatar a moça, agora que a circunstância estava de fato a seu favor. Por tudo que lhe perturbara na noite anterior, Antenor abriu mão de seus estratagemas tradicionais – à exceção de seu vinho – e deixara que o momento naturalmente mostrasse seu charme. O charme e o romantismo esquematizados e preparados que lhe haviam garantido muitas trepadas sensacionais hoje não lhe convinham: não haveria Piaf nem Cartola, porque a ocasião era de Caetano; não haveria velas nem luzes indiretas, era fim de tarde e uma luz cálida e suave penetrava pelas janelas.

Antenor discretamente repousou a mão sobre as coxas que magneticamente lhe capturaram a atenção desde que conhecera Ana e sua comprida meia xadrez. Hoje, ela não usava meia xadrez, mas, como já disse, a saia jeans dava um destaque excepcional ao contorno das pernas. Uma carícia sutil com a ponta dos dedos. Ana olha-o com a cabeça baixa, levantando somente o olhar, de esguelha, configurando aquela expressão de mulher que sabe exatamente os dotes que possui e onde pretende chegar. Essa expressão totalmente feminina de provocação, que é completada por um esguio sorriso de meia boca só. Sem que se perceba, a mão desliza para baixo da saia jeans, movimentando-se lentamente, fazendo a menina agarrar-se ao pescoço de Antenor. Beijos lânguidos.

Caetano já está terminando sua performance, tocando a última canção. O corpo de Ana já está meio deitado sobre o sofá e Antenor persiste com a mão sob sua saia, massageando-a, fazendo a menina movimentar involuntariamente até o peito do pé. Ela mantém uma mão agarrando firmemente a cabeça de Antenor junto a sua, com sua respiração penetrando alterada e ofegante em seus ouvidos, em espasmos e gemidos; com a outra mão, Ana segura e arranha as costas do anfitrião.

Quando a “Transa” de Caetano acabou, a de Antenor e Ana mal havia começado. Por uma ironia do acaso, o aparelho de som começou a tocar o próximo cedê, Edith Piaf, que Antenor comummente utilizava para seduzir as damas em seu apartamento. O imprevisto arrancou um riso rápido dele, mas logo confundido com suas expirações sonoras de tesão. A saia jeans já estava atirada no chão quando Ana, entremeando palavras em seus gemidos de prazer, exclamou:

- Eu amo... a Edith... Piaf!

Antenor executava um movimento circular com a ponta dos cinco dedos, acariciando a vagina jovem e úmida da moça. Era de fato uma boceta linda, com lábios rosa claro e pêlos pubianos bem aparados. A mão esquerda de Ana parecia uma guilhotina incessante, movimentando-se para cima e para baixo no pênis rijo do anfitrião, que por sua vez, com a outra mão, afagava o seio esquerdo que tanto admirara no bar na noite anterior. Os seios não deixavam nada a desejar do que haviam prometido sob a blusa branca fininha. Eram firmes, com mamilos claros e pequenos, e grandes – grandes que preenchiam perfeitamente o apalpar da mão ávida de Antenor, que agora passeava livremente do esquerdo para o direito.

Enfim, Antenor se apoiou melhor no sofá, ostentando seu membro ereto e úmido apontado para Ana e penetrou-a. Lentamente. Profundamente. Um gritinho de gozo saiu naturalmente da boca da menina, que pendeu a cabeça para trás – como que voltada aos céus – e fechou os olhos. Um prolongado “ah” emitiu-se da boca de Antenor, como que num alívio.

Antenor iniciou um movimento pendular com os quadris, sentindo sua presa ali, submetida, tomada, passiva e vulnerável. Ana estava com as costas recostadas num dos cantos do sofá, a cabeça ainda atirada frouxa para trás e as pernas abertas. Antenor cobria-a com o corpo, arrancando-lhe espasmos de euforia, que, nesses momentos, apertava-o com uma força bruta, cravando-lhe as unhas nas costas. Ele mantinha a situação em gradual progressão, conduzindo a menina a um prazer constante e ascendente, abandonando a pressão do tempo. Fodiam incessantemente.

De súbito, veio à mente de Antenor a figura severa e circunspeta de Marluce, como que numa brincadeira de seu inconsciente. Marluce era a coordenadora disciplinar de seu respeitado colégio religioso – uma odiosa lembrança de sua puberdade –, com seus trejeitos frenéticos e sua voz irritante. A Sra. Marluce era uma velha rabugenta, cuja função no colégio era reprimir a sexualidade florescente daqueles jovens, dentre os quais o extrovertido Sr. Cohen. Sra. Marluce não permitia que as meninas usassem saia acima do joelho. Qualquer comportamento indecoroso era punido. Decotes eram crimes. Deslizes verbais eram tratados como atentados ao pudor. Ana certamente seria uma puta escrota se caísse no julgamento da Sra. Marluce Freitas – que, por sinal, era freqüentemente homenageada nas comemorações do colégio pela retidão e moralidade de seus trabalho e conduta. Aquela puta!

Pensava em Marluce enquanto fodia porque queria vê-la ali, agora, materializada instantaneamente para assistir ao sexo, à crueza real do desejo, à quintessência do amor real. Queria-a ali para que visse o menino estudioso agarrado às coxas perfeitas de Ana, penetrando-a, gemendo e arrancando gemidos lânguidos. Queria esfregar na cara dela que sua disciplina casta fora vencida pela força natural do prazer, da tentação, do instinto. Que o ímpeto humano triunfara sobre o adestramento moral da coordenadora. Antenor regozijava imaginando a expressão de assombro e repúdio de Marluce, parada ali, horrorizada.

Marluce era, para ele, o ícone caricato dos “bons costumes”, caricatura essa que o tempo ajudou a sacramentar. As coisas flexíveis, sob pressão, dobram-se e adaptam-se. As coisas rígidas, quebram-se. Foi esse o efeito da educação de Marluce Freitas sobre Antenor Cohen. Quebrou-se e transformou-se em sua antípoda. E ali estava ele, fodendo Ana com prazer e debochando maravilhosamente de Marluce. Cada vez mais rápido. O sangue pulsando com violência e ribombando no peito. A respiração ficando cada vez mais audível e ofegante. O movimento de quadris cada vez mais firme e veloz. Os gemidos progressivamente altos de Ana estimulavam Antenor, que se tornava mais incisivo na penetração, fazendo Ana gemer mais e mais. Um ciclo de mútuo estímulo. Até que todo o sangue subiu para a cabeça de Antenor, que, em êxtase, soltou um longo e profundo gemido de prazer, apertando Ana contra si. Ana, tendo seu corpo retesado, deu seu último espasmo, relaxando-se completamente no encosto, frouxa e deliciada. Antenor logo largou molemente o torso sobre Ana, pleno. O gozo. Antenor Cohen gozava totalmente. Ana e Marluce. O orgasmo com as duas cabeças. Riu-se. Naquela hora, imaginava Marluce retirando-se revoltada do recinto.