sábado, 4 de outubro de 2008

Cultura Brasileira

Para dar um agitada no mês de outubro, digitei uma prova de Cultura Brasileira, de um ano atrás. Fiz mudanças discretas, mas irresistíveis ao datilógrafo. Até pensei em dar uma descontraída na linguagem, mas no fim achei melhor não mexer, porque tô enferrujado no assunto.


A idéia aqui é comparar as visões de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Hollanda sobre o Brasil e o brasileiro, tentando mostrar, além das especificidades de cada autor, os pontos de contato das duas abordagens. Cada um deles dá um enfoque diferente à questão nacional – o primeiro aplicando o instrumental teórico marxista e o segundo cruzando antropologia cultural com sociologia – e, obviamente, chegam a conclusões diferentes, mas nem tanto, sobre a condição do país nos emblemáticos anos 30.
O marxismo que inspira Caio Prado é o marxismo vivo, o marxismo que não sucumbe à história, aquele que, muito pelo contrário, só faz sentido a partir dela. A preocupação do autor não é transplantar um modelo conceitual e abstrato de revolução para o Brasil, mas sim compreender, a partir do estudo histórico, as especificidades dessa formação socio-econômica, a teleologia própria da evolução do nosso povo e, somente a partir disso, as possibilidades e limitações da transformação social brasileira. Por isso, a “linha mestra” da história do Brasil é o fio condutor da análise de Caio Prado, e é em busca dela que o autor regride ao período colonial.
A proposta panorâmica de Caio – o “sentido da história” – se reflete numa ampliação do campo de estudo da colonização por Portugal. Para o autor – e isso foi absorvido como lugar-comum na historiografia nacional –, não podemos analisar a “colônia-Brasil” se não a inserirmos no quadro mundial do capitalismo mercantil, no contexto das grandes descobertas e da ascensão da burguesia européia. Sem empregar a terminologia atual, Caio Prado Jr. argumenta que o Brasil é somente uma peça de um “sistema-mundo”, de uma estrutura econômica-política, de um movimento que atrelou a América à Europa como apêndice involuntário e subordinado. Assim, a relação do Brasil com a metrópole era sempre ditada pela força do capital; as formas de ocupação humana na colônia dependiam somente da viabilidade de se auferir maiores ou menores lucros: o caráter da colonização é, em sentido estrito, empresarial. Disso fica evidente que não há nenhuma preocupação com o povoamento e com a sociedade brasileira que ultrapasse o discurso metropolitano. Esse descaso com um projeto civilizador é, para Caio Prado Jr., um elemento constitutivo essencial do desenvolvimento de nossa nação. Isso se dá claramente em contraste com as colônias temperadas do norte, que atraíram da metrópole colonos ávidos por reconstruir no Novo Mundo a sociedade de que haviam sido alijados com a intolerância religiosa, o Estado autoritário e o cercamento dos campos. Migraram para povoar.
As colônias de exploração são, pois, sociologicamente marcadas pelos meios para a acumulação às suas custas. O emprego do cativo africano e a preponderância da estrutura familiar patriarcal-autoritária instituíram-se de tal forma na vida social brasileira que nem a abolição da escravatura nem a proclamação da República apagaram de nosso espírito nacional. Mais do que isso, serviram como meios para conservar o perfil de dependência e subordinação da sociedade brasileira, incapaz de se reerguer pelos vícios historicamente impregnados em sua base. Como veremos adiante, a análise de Caio Prado não se encerra nesse pessimismo fatalista.
Passemos, antes, a Sérgio Buarque de Hollanda e as “Raízes do Brasil”. O mote essencial de sua análise socio-cultural brasileira é a adaptação de um modelo de sociedade burguesa-democrática europeu a um país historicamente colonial, escravocrata e agrário-exportador. O resultado desse descompasso entre o ideal e o real seria, para Sérgio Buarque, a feição mais particular da sociedade brasileira.
Como a família (incluindo parentes e agregados do latifundiário) é o núcleo social, politico e econômico da ocupação do território nacional, o princípio familiar tende a ser a referência maxima para as relações sociais. No entanto, Sérgio adverte para a diferença qualitativa entre família e Estado, e para o inevitável choque entre o primado humano, direto e emocional da família com a lógica abstrata, impessoal e supra-humana do Estado. Isso implica que as esferas do público e do privado tendem a se confundir, e o propósito objetivo do Estado e do Direito se perde na manifestação do indivíduo passional, do sujeito ativo e do interesse particular. Isso não se restringe ao Estado, pois todas as formas abstratas de interação social – imprescindíveis à coerência do ideal liberal-burguês – como o contrato e a troca livres, o voto, a concorrência interpessoal, a igualdade juridical, etc. são tergiversadas pelo ímpeto personalista da cultura brasileira.
Entendendo esses dois eixos antagônicos, compreendemos por que a análise buarquiana é prioritariamente lusitana: são os portugueses que trazem a cultura européia, são eles os colonizadores europeus e os promotores da modernização; mas são eles, também, que trazem o culto à personalidade, a hierarquia hereditária e o espírito do ócio e da aventura que perverteriam essas mesmas instituições. O entendimento de Sérgio Buarque sobre a cultura brasileira é, em última instância, a remodelagem do elemento português com as condições do ambiente tropical, da sociedade colonial e da interação racial com o negro e com o índio.
A questão do colonizador luso conduz Sérgio a diagnosticar vários dos vícios que retardam a modernização brasileira na sociedade portuguesa, em suas origens. O fato da burguesia não romper propriamente com a nobreza tradicional acarretou de valores feudais na mentalidade do colonizador, como a exaltação do ócio e da contemplação, o gosto pelo conhecimento livresco e abstrato e a supremacia do destino sobre a ação dos homens. O resultado desse substrato cultural para o processo de colonização é o ideal da aventura, do ganho farto sem trabalho árduo, do colher onde não plantou. A civilização brasileira, por isso, teria de nascer da soma aleatória de várias ambições particulares e seu povo jamais compartilharia o ideal protestante do trabalho recompensado, do ganho construído, do acúmulo previdente.
No entanto, Sérgio é otimista frente a modernização brasileira. Ele crê no processo, crê no amadurecimento socio-cultural do brasileiro a longo prazo, crê que estamos nos desligando de nosso passado obscurantista e incorporando o ethos moderno – a substância das instituições. A República e a Democracia transcenderão seu caráter formal, pois serão introjetadas na forma de pensar do brasileiro. Nisso se assemelha a solução idealista de Caio Prado Jr. para a superação de nosso atraso, que é a qualificação do povo, a saúde, a cultura e a educação para os “negros boçais” e os “índios apáticos” que são a base que se levantaria, o “corpo inorgânico” que se tornaria “orgânico”, functional, útil. Caio também apresenta uma solução “materialista” – mais presa ao esquema marxista ortodoxo que à história brasileira – na qual defende que as contradições sociais resultants dessa situação de submissão e exploração concluiriam numa nova fase para o Brasil, num novo Brasil.
Emparelhar pontos de contato nas duas interpretações nos leva obrigatoriamente a reconhecer a semelhança entre os tipos-ideais “trabalhador” e “aventureiro” de Buarque com a distinção entre colônias de povoamento e exploração no estudo de Caio Prado. É evidente que a colonização nas regiões temperadas foi empreendida por homens muito mais afeitos ao trabalho que à aventura, à estabilidade que ao risco, ao esforço lucrativo que ao perigo lucrativo.
O inverso é igualmente evidente. A colonização no hostil clima tropical atraiu os europeus com o ímpeto do lucro imediato do comprar barato e vender caro, com o desejo (e o poder) de mandar em escravos, não de trabalhar.
Outro ponto de contato que é importante perceber é a preocupação de ambos com o Brasil em relação ao mundo. No caso culturalista de S. B. H., isso se manifesta pelas idéias de vanguarda do mundo norte-atlântico, pelo atraso da sociedade brasileira em relação ao funcionamento institucional e cultural de um modelo de sociedade que Sérgio se propõe a defender (é época de nazifascismo e da III Internacional). No caso de Caio Prado, isso se manifesta pela preocupação analítica com a inserção brasileira no capitalismo mundial e o que isso implica para sua existência.
Passando às divergências interessantes entre os dois autores, podemos perceber, à primeira vista, uma distinção de abordagem: o culturalismo é influenciado pela antropologia cultural norte-americana e por Weber (principalmente em suas visões de poder, Estado e método); o marxismo é influenciado por Lênin (e sua teoria do imperialismo) e por Florestan Fernandes. Mas essa distinção implica uma outra, epistemológica, entre os dois. A análise de Caio Prado parte do entendimento do Brasil (macro) para o entendimento de seu cidadão (micro); Sérgio, inversamente, traça o perfil psicossocial da parte (indivíduo), e a partir dele depreende a condição do todo (nação), do Brasil. E isso é tudo, por enquanto.

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